Não é sem um certo
desconforto que me incumbo da tarefa de apresentar um novo trabalho desse
estranho autor, já em fase de produção. Embora seja um livro de fácil apreensão
e profundas lembranças, visando e incentivando o prazer da leitura, provoca-me
inquietações bizarras. Com o estranho nome de SARJOBES & BRANCILDES, é o
seu sétimo livro, fato que sugere um número sempre sob suspeição. Afinal, lembrou Péricles Prade, “não era
o Sábado o sétimo dia e o sabático o sétimo ano? E não havia no Apocalipse as 7
igrejas da Ásia, e os 7 selos, os 7 anjos, as 7 trombetas, as 7 vozes os 7
flagelos e as 7 taças da cólera de Deus?”. Nunca é demais recordar, também,
da observação de Sarjobes: “não eram 7 os cinco dedos de Brancildes?”
A dificuldade desta
empreitada reside no fato de que a sua principal qualidade constitui-se,
justamente, no seu maior defeito: exacerbando-o de tempos em tempos, opera com
um humor escrachado e descarado, explícito ou implícito, que mal esconde o que
parece ser uma necessidade compulsiva de destruir, de desmistificar, de brincar
com as coisas e com a palavra, arrancando-lhe de sua acepção ou sentido
consagrados e inserindo-a em contextos outros de significação total ou nenhuma.
Ou seja, tudo é importante, mas nada deve ser levado muito a sério. É bem
verdade que autores já consagrados não excluíram de seus trabalhos uma certa
dose de humor. Will Durant, por exemplo, afirmava isso, não apenas porque a
sabedoria deixa de ser sábia quando espanta o divertimento, mas também e talvez
principalmente, porque o senso de humor se torna um parente próximo da
filosofia. Pois é.
Alguns de seus contos
mais parecem crônicas, que correm o risco de não perpetuar-se, na medida em
que, supostamente, são datadas, da mesma forma em que, antes, publicou
algumas crônicas em diversos jornais literários que, na verdade, poderiam ser
chamadas de histórias curtas ou contos. Ou seja, ficciona a realidade e realiza
a ficção. E até hoje tem dificuldades em classificar os textos O GRANDE HERÓI
(pg. 51), RÉQUIEM PARA UMA ESQUERDA RECALCITRANTE (pg. 93), A FRASE (pg.101) e
A MÚSICA E O FIM DO MUNDO (pg. 121). A enorme dúvida, de que se viu presa,
levou-o a profunda meditação em um retiro espiritual feito junto a rabinos
franciscanos.
Qual um pensador
anabatista, feroz inimigo dos selos, crachás, modelos já tentados e outros
recursos de pré-qualificação, sempre se irritou com aquilo que dizem que não
pode ou não deve ser feito, pois, repetia, “quero apenas divertir, entreter...
devo seguir algum exemplo?”.
Diz-se, ou define-se,
como um intelectual de esquerda, engajado às preocupações sociais, mas ironiza
essa visão. Faz ou fez parte da direção
de representativas instituições culturais, de literatura, de dramaturgia e de
história, porém a elas se refere, quase sempre, de forma irreverente.
Parece preferir o som da
palavra a qualquer uma de suas acepções. De certa forma, burla o leitor,
levando-o a mergulhar na farsa, ali o abandonando impiedosamente, como que
dizendo: ama ou larga, aprecia ou fecha o livro. Não basta conquistar o leitor, há que seduzi-lo. Coragem, Lulu!... conforme disse
Louis Antoine Léon Saint-Just a Luciènne Malebranche, jovem jacobina que
relutava em entregar-lhe a cabeça do irmão, amigo de Robespierre.
A arte para mim é um
delicioso tormento, dizia-me ele, o autor e não Saint-Just, por suposto, afirmando
que o maior prazer da vida é fazer aquilo que as pessoas dizem que você não
pode ou não deve fazer. E mais, sem riscos não há ganhos. Em contrapartida tentava demonstrar que onde
não há paixão não há virtude; mas ao mesmo tempo alertava para o fato de que as
pessoas com algumas virtudes são, muita vez, desinteressantes, ao passo que
outras, carregadas de vícios, mostram-se extremamente atraentes e deliciosas. E
transformam-se em personagens.
“Oh, Marx, Oh Lênin! Oh Freud!, minhas santas almas benditas!...”,
costumava bradar em seu tugúrio, na verdade um templo em homenagem à galhofa, à
burla, à iconoclastia, “façam-me escrever e sempre, que eu os manterei
eternamente vivos, interessantes e, acima de tudo, engraçados. Dêem-me –pois
estou precisado! - seriedade, austeridade, elegância ... mas não agora,
please!... não desta vez”. Os
emblemáticos temas da experiência humana, o amor, a morte, a sexualidade, os
embates metafísicos, espirituais e religiosos, bem como as transformações
sociais possíveis são assuntos recorrentes em seus escritos e fontes de
tranquibérnias. Bebe toda a sabedoria da obra de Freud e a transforma em filme
de Mel Brooks.
Os textos, o autor os compõe
a qualquer momento e nas mais inusitadas situações, seja em consultório médico,
salas de conferências, caminhando pelas ruas... Momento pitoresco foi a viagem,
de trem, organizada pela União Brasileira de Escritores a Presidente Prudente,
para a inauguração de uma Feira de Livros, que reuniu treze escritores em
divertida caravana literária.
Mas o nosso autor, no
debate de que participou no citado evento, quando pôde falar de sua obra,
arrematou seu discurso com uma frase através da qual tentava resumir o seu
pensamento: as coisas não são o que são, mas sim aquilo que seria engraçado
se fossem. E completava:
“Escrever um livro é como fazer a guerra, fácil de começar, mas difícil de
terminar. Mas é a minha paixão. Somente quem amou um dia sabe o que a vida
oferece de horror e prazer”. Na
verdade, lembra-me Mae West, que dizia: eu nunca amei nada e nem ninguém do
jeito como amo a mim própria.
A famosa atriz está sendo citada para
chamar a atenção para essa coisa da vaidade do artista como sendo a principal -
na verdade, a única - razão para seu trabalho. Todo o resto é secundário. “Vê
como sou interessante!”, “Vê como é divertida e original a forma como vejo o
mundo!”, “Observa como sou diferente”, “Nota como tudo que faço é bom, de
qualidade”. “Entendeu porque quis levá-la para a cama?”. Frases que espelham a
realidade, jamais afirmadas, jamais mencionadas, que permanecem por trás de
todas as racionalizações usualmente feitas para explicar o seu trabalho. É bem
verdade que o seu escritor predileto é Jerome K. Jerome, autor inglês do século
XIX, do qual fez uma divertida tradução de seu mais importante livro (Three Men
in a Boat) a qual pretende publicar oportunamente.
Diga-se, ainda, que o seu panteão de
heróis, êmulos de sua ação de prática social, serve muito mais como referência
para demonstração da denunciada iconoclastia.
Percebe-se que o nosso autor aqui os considera como instrumentos para
afirmação de sua grandeza pessoal, meros coadjuvantes ou “escadas” – conforme
se diz na gíria teatral – úteis para abrilhantar, ressaltando, a sua
performance e não para divulgação de seus pensamentos através a afirmação de
suas idéias. Injusto? Falso? Pretensioso? Desrespeitoso? Pôxa!... mas quem está
preocupado com isso?
Hersch W. Basbaum é
escritor, crítico literário e diretor da União Brasileira de Escritores.