Marigê Quirino Marchini
Luís
da Câmara Cascudo,
biógrafo de Auta de Sousa (1876-1901) afirma: “Não pode haver
duas opiniões sobre Auta de Sousa. É a maior poetisa mística do Brasil”. Concordemos todos com o título merecido pela
suave e comovente Auta de Sousa. Sua poesia é magnífica, tão límpida, tão
musical, fonte de palavras de tal modo entrelaçadas que passam a ser poderoso
rio de sensações estéticas e espirituais para o leitor.
Mas divergem os críticos quanto à filiação
acadêmica da autora. Uma neo-romântica? Ou simbolista?
Lembremos que estamos em 1900, quando da 1a.
edição de Horto, concebido poucos anos antes, uma compilação de poesias da
juventude da autora, unidas por uma identidade vigorosa e original. Lembremos
que suas primeiras poesias são publicadas aos 17 anos, em 1893.
Nesse espaço de tempo reinava glorioso o
parnasianismo, escola da impassibilidade, do ideal da forma, que teve figuras
representativas no Brasil.
O romantismo, que se esgotara na Europa em meados
do século XIX, salvo alguns românticos tardios, imperou no Brasil por mais
tempo. Mas no final do século XIX, o positivismo na ciência, o naturalismo na
prosa, o parnasianismo na poesia, eram a regra. Mas a nossa Auta não era
parnasiana, apesar de apreciar poetas dessa escola, como Olavo Bilac.
Muitos críticos reconhecem em Auta de Sousa os
paradigmas dos românticos, tal a idéia da natureza como abrigo e ideal, a
religiosidade, a contemplação, a abertura às emoções, o individualismo, que
fazem de Auta de Sousa uma neo-romântica ou romântica tardia, como tantos da
literatura mundial.
Mas nesse fim de século XIX eclodiram movimentos
artísticos rebeldes, como o impressionismo na pintura, contra o classicismo, e
na literatura o simbolismo (primeiramente chamado de decadentismo) contra o
academicismo do Parnaso; em breve, esse movimento se irradiaria mundialmente,
enquanto na França, pátria do simbolismo, já brilhavam as estrelas de Verlaine,
Rimbaud,, Laforgue, Corbière, e também brilhava no Brasil a voz expressiva de
Cruz e Sousa, tardiamente reconhecida.
Teria Auta de Sousa tido conhecimento do
movimento simbolista? Sabemos que a poeta dominava o idioma francês e lia no
original Lamartine, Chateaubriand, Vitor Hugo, Fénelon. Teria tido acesso
também, por caminhos indiretos, à poesia simbolista dos poetas franceses? Chegou a ler Cruz e Sousa?
São perguntas pertinentes, porque na poesia de
Auta de Sousa também estão presentes vários caracteres desse movimento, como a
valorização do mistério da vida, e como definição “misticismo, tom idealista e
religioso, a teoria das correspondências sensoriais, a religião da
beleza”.
Baseado na teoria de Edgar Allan Poe, de que o
poeta é o intérprete de uma simbologia universal, Mallarmé levou para o
simbolismo essa teoria da missão do poeta – recriar o absoluto pela poesia,
formular as derradeiras correspondências. Assim, a criação cósmica e a criação
poética são paralelas. Segundo Mallarmé, “não se devia dar nome ao objeto, mas
sugeri-lo, invocá-lo pouco a pouco”, processo encantatório que caracteriza o
simbolismo. O Simbolismo teve
influência sobre grandes poetas do século XX como Rilke, Yates e Claudel, entre
outros.
Reconhecemos nas poesias de Auta de Sousa, em
Horto, uma configuração neo-romântica e também marcadamente simbolista,
uma visão não excluindo a outra. Antes se completando, harmoniosamente, quando
sabemos que de uma certa forma o Simbolismo é uma continuação do Romantismo,
tendo como elementos comuns a espiritualidade, a interiorização, o subjetivo, o
individualismo, o vago, o misterioso, o ilógico, sendo esses três últimos itens
mais freqüentes no Simbolismo.
Vejamos em Auta de Sousa uma poesia simbólica, como “Horto”, que dá
nome ao livro. Tudo nessa poesia é metáfora, maravilhosamente construída, de
queda à ascensão, de tristeza a clarões de fé, de dúvida angustiante à certeza
da revelação, e tudo numa imagética de construção magnífica, de
correspondências perfeitas entre o horto interior e o horto bíblico, um jardim
subjetivo que se desdobra silenciosamente em alamedas, ora sombrias de
pensamentos angustiantes, ora gloriosamente abençoadas pela luz.
A poesia toda com a musicalidade tão cara ao
simbolismo.
Eis algumas poesias simbolistas de Auta de Sousa:
“Crepúsculo” – “O Ângelus soa vagarosamente/ A
noite desce plácida e divina./ Ouço gemer meu coração doente/ chorando a tarde,
a noiva peregrina”.
Soneto com 16 versos, que abre com os dois
primeiros decassílabos do segundo quarteto, como epígrafe: “Há pelo espaço um
ciciar dolente/ De prece em torno da igrejinha em ruínas ...”. //
E vejamos a poesia “Ao luar” (de junho de 1896).
Imagens se sucedem em tons esmaecidos e musicalidade, lembrando Cruz e Sousa:
“Astros celestes, docemente louros/ giram no espaço em luminoso bando;” (...)
“Quanta tristeza pela noite clara!/ Quanta saudade pela luz boiando!” (...)
“Flocos de nuvens pela Esfera adejam”. “Barcos de neve pelo Azul formando (...)
Neles vagar por todo céu dourado” // “Eles parecem também velas brancas/
soltas, à toa, pelo Mar vagando .../ Folhas de lírios pelo Ar suspensas / Aves
saudosas ao luar chorando”.
Cores esmaecidas, e dourado, branco, azul, e o
branco se repetindo: “lua branca”, “rosas brancas”, e nesse cromatismo a
figuração onírica: “E essas estrelas, muito além dispersas/ São rosas brancas
no Infinito imersas/ Monjas benditas, ao luar chorando”. E o clímax
sobrenatural, tão do simbolismo: “As preces tristes de um magoado coro/ De
almas penadas ao luar rezando”.
Eis o lirismo de Cruz e Sousa em “Antífona”, na
sua famosa invocação: “Ó Formas alvas, brancas, Formas claras / De luares, de
neves, de neblinas (...) / Ó Formas vagas, fluídas, cristalinas ... / Incensos
dos turíbulos das aras”. Parece então haver um contraponto entre as duas
poesias, a de Cruz e Sousa, que é anterior, e a de Auta de Sousa.
E eis o vocabulário litúrgico, tão caro aos
simbolistas, repetido em Auta de Sousa: “Ao longe o luar vem dourando a treva
/... Turíbulo imenso para Deus eleva/ o incenso agreste da jurema em flor
//”. O toque brasileiro da “jurema em
flor”, de regional torna-se universal.
Auta de Sousa colaborou no jornal “A República”.
Esse jornal, no dizer de Luiz Fernandes, historiador da imprensa da época, era
“o de maior circulação, o mais lido, mais espalhado pelo Brasil, porque
permutava com a imprensa do sul, do norte e do centro”.
Por seu lado, Cruz e Sousa, precursor do
Movimento Simbolista no Brasil, publica em 1893 Missal, prosa poética, e
Broquéis, poemas. E antes, em 1890, tendo se transferido para o Rio de Janeiro,
junta-se ao grupo de escritores do jornal Folha Popular, B. Lopes, Oscar Rosas
e Emiliano Perneta, publicando o Manifesto do Simbolismo no Brasil.
Os jornais circulam. Podemos mesmo supor um mútuo
conhecimento dos dois poetas. Possível pois que referências do simbolismo e de
Cruz e Sousa tivessem chegado a Auta de Sousa? Ou mesmo teria ela conhecimento
dos poetas simbolistas franceses?
Auta teve uma educação esmerada em colégio
católico francês, no Recife. Falava francês fluentemente e lia seus autores no
original. Participou da vida intelectual da época.
Estamos nas conjecturas, porque na lista extensa
de autores que a poeta lia, citados pelo seu irmão, também intelectual, não consta o nome de autores simbolistas.
Ou teria a poeta chegado aos seus cânones
poéticos e ao seu imaginário independentemente de outras influências?
Sobre o assunto ver também o ensaio de Giselda
Lopes do Rego Pinto, “Auta de Sousa e a
estética simbolista”, de 1974.
Ambos poetas, Cruz e Sousa, de Santa Catarina, e
Auta de Sousa, do Rio Grande do Norte, eram de ascendência negra.
Ambos sofreram doença grave, a tuberculose. Ambos
sublimam seu sofrimento através da poesia, em metáforas, cores e música das
palavras.
Ambos poetas de final do século XIX, eleitos pelo
Simbolismo, ressaltando-se que as condições familiares, econômicas e sociais
foram mais favoráveis para Auta do que para Cruz e Sousa. Auta, além disso,
sofreu a perda de seu irmão mais novo, de forma trágica, o que marca
dolorosamente várias de suas poesias.
Mas mesmo com esse sofrimento, a poesia de Auta é
vigorosa, de grande força vital, em seu transcendentalismo e espiritualidade.
Por outro lado, nota-se em sua poesia um toque de sensualidade estética, que
permite louvar a beleza física de várias figuras de seus poemas, profanas ou místicas.
O que nos lembra a sensualidade descritiva de outra grande poeta, a mexicana
Juana Inês de La Cruz, seiscentista.
Auta escreve também várias poesias para crianças,
variando do tom comovido como a tristíssima litania – e ao mesmo tempo tão bela
– sobre a morte de uma criança, “Loli”, “e branca e branca como um lírio puro /
na sua alvura virginal de neve / (...)”.
São várias as poesias sobre crianças, numa ciranda de amor à infância.
As tristes e as de puro deleite. Seus retratos de pequenos encantadores nos
lembram as pinceladas do impressionista Renoir, uma, a poeta, captando as
variações de luz na poesia; outro, o pintor, captando-as em suas telas.
Vide a poesia “Crianças” entre outras do gênero.
Ao mesmo tempo essas descrições de pequenos seres,
essas meninas tão vivazes, em movimento, “uma açucena de esquisita louça” (que
linda e moderna imagem!), “De face cor de neve e trança loura (...)”, essas
Laurita, Sofia, Lúcia, Sara, Rebeca, Valentina, Inocência, nos lembram também
uma câmara fotográfica perspicaz, ou melhor, uma filmadora sutil, e aí o tom
moderno de Auta de Sousa.
Estamos no século XXI. Há ação nesses retratos,
nessa galeria de garotas, como não há outra galeria assim na poesia brasileira.
Não só o enfoque. As palavras também são modernas. Elas vivem, as palavras e as
crianças.
Grande menina, grande artista essa Auta de Sousa,
morta aos 24 anos, flor prematura da poesia, tão sábia, tão talentosa.
Vejamos outra poesia de Auta de Sousa, com a aura
do romantismo, “Fio Partido”, a última poesia do seu livro, escrita em 1o.
de janeiro de 1901, numa antecipação de sua morte. Lembremos que a poetisa
tinha especial carinho pelos poetas românticos Casemiro de Abreu, Gonçalves
Dias e Luis Murat.
“Fugir à mágoa terrena/ E ao sonho que faz
sofrer, / Deixar o mundo sem pena/ Será morrer? // Fugir neste anseio infindo /
À treva do anoitecer, / Buscar a Aurora sorrindo / Será morrer? // E ao grito
que a dor arranca / E o coração faz tremer, / Voar uma pomba branca / Será
morrer? //”.
II. “Lá vai a pomba voando / Livre, através dos
espaços ... / Sacode as asas cantando: / ‘Quebrei meus laços’. // Aqui,
n’amplidão liberta, / Quem pode deter-me os passos? / Deixei a prisão deserta,
/ ‘Quebrei meus laços!’ // Jesus, este vôo infindo / Há de amparar-me nos
braços / Enquanto eu direi sorrindo: / Quebrei meus laços!”. //
Essa poesia, com seu refrão “Será morrer?”, que
se completa com outro, “Quebrei meus laços”, é de uma harmonia celeste e em
movimento.
Sua composição é também extremamente musical.
Diga-se de passagem que poesias de Auta de Sousa foram musicadas por vários
compositores.
Fonte de misticismo para Auta de Sousa foram a
“Imitação de Cristo”, os livros de Santa Teresa d’Ávila, as “Meditações” de
Marco Aurélio, e principalmente os Evangelhos.
Dos poetas brasileiros sabe-se que conhecia e
admirava Casemiro de Abreu, Gonçalves Dias, Luiz Murat e Olavo Bilac.
Lia os poetas franceses românticos,
principalmente Lamartine e Vitor Hugo. Escreveu em francês seu belíssimo poema
Agnus Dei, com epígrafe de Lamartine.
O livro “Horto” teve a 1a.
edição em 1900, com prefácio de Olavo Bilac, e foi publicado poucos meses antes
da morte de Auta de Sousa.
A 2a.
edição é de 1911, impressa em Paris, com uma “Nota”, breve biografia da autora,
por seu irmão Henrique Castriciano de Sousa.
De 1936 é a 3a.
edição de “Horto”, prefácio de Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde), Rio de
Janeiro.
1970, 4a.
edição de “Horto” pela Fundação José Augusto, Natal, RN, contendo poesias das
três edições anteriores, mais 17 poesias inéditas.
E em 2001, em Natal, a 5a.
edição de “Horto” na “selecionadíssima Coleção Nordestina, lançadas pelas
Editoras Universitárias do Nordeste”, nas palavras de Valério Mesquita, autor
da orelha do livro, este também com extensa e valiosa “Introdução para um
Estudo da Vida e Obra de Auta de Sousa”, de Ana Laudelina Ferreira Gomes.
O livro de Auta de Sousa é riquíssimo, um
panorama de beleza a ser contemplado demoradamente, num desdobrar de anotações,
comentários, referências, para o crítico e o leitor, não se esgotando em um só
comentário como o presente.
Lembramos também que Auta de Sousa colaborou na
imprensa da época, tendo em 1893 publicado suas primeiras poesias. Colabora na
revista “Oásis”, órgão do Grêmio Literário “Le Monde Marche”, de Natal, RN, em
1894; e em 1896 no jornal “A República”, pertencente ao governo. Também
colabora na revista “A Tribuna”, do “Congresso Literário”, usando os
pseudônimos de Ida Salúcio e Hilário das Neves, em Natal, RN, em 1897.
Em 1898 colabora no jornal “Oito de Setembro” e
na “Revista do Rio Grande do Norte”. Nessa data escolhe o nome definitivo para
seu único livro de poesias, “Horto”, inicialmente pensado sob o título de
“Dhálias”.
No ano da edição de “Horto”, 1900, Polycarpo
Feitosa (Antonio José de Melo e Souza) publica o artigo “Horto” em “A
República”, e Sebastião Fernandes em “A Tribuna”, artigo com o mesmo nome.
Em 1901, Antonio Marinho publica número especial
em “A Tribuna” dedicado a Auta de Sousa.
(Referências bibliográficas da pesquisa de Stig Roland Ibsen, IN Auta de
Sousa, Francisco Cândido Xavier, 10a.
edição, fevereiro de 2004, do Instituto de Difusão Espírita).
Auta de Sousa. “Horto”. 5a.
edição. RN: EDUFRN – Editora da UFRN, 2001.
Ibsen, Stig Roland.
“Auta de Sousa. Francisco Cândido Xavier”. Pesquisas
bibliográficas. Prefácio e biografia, Clóvis Tavares. 10a.
edição. Instituto de Difusão Espírita, fevereiro de 2004.
Galante, J. e Coutinho, Afrânio. “Enciclopédia da Literatura Brasileira”. Vol. I. São Paulo: co-edição Global Editora, Fundação Biblioteca Nacional, Academia Brasileira de Letras, 2001.
Marigê Quirino
Marchini é escritora, crítica literária e tradutora.