A
estréia em ficção do poeta Marcos Vinícius Ferreira de Oliveira se dá em grande
estilo. Nascido em Cataguases, cidade de ricas tradições estéticas e berço de
movimentos vanguardistas na literatura,
cinema, arquitetura e artes plásticas, o autor é professor e Mestre em
Literatura pela Universidade Federal do Espírito Santo e oferece-nos em sua
obra Uma e outra forma de tirania,
uma prosa meticulosamente construída, que reflete não apenas seu amplo domínio
da técnica narrativa, mas uma nervura e solidez própria dos veteranos.
Os
onze contos do livro, enfeixados por sóbrio projeto gráfico, retratam situações
comezinhas que se passam em ambientes domésticos e que constituem o dia-a-dia
de uma cidade do interior. No caso, o pequeno distrito de Vista Alegre, uma
espécie de alter ego da cidade natal do autor, foco e eco dos pequenos acontecimentos, dramas recorrentes na
vida de personagens simples, mas capturados por um olhar atento, terno e
poético de um verdadeiro estilista.
Neste
pequeno burgo em que - na visão de um dos protagonistas -, “o relógio da igreja
marca sempre a mesma hora”,
eclodem histórias em que a
traição, a espera, a nostalgia do passado, as decepções, o desencontro
familiar, o silêncio das relações, a vida e a morte se entrelaçam ou se sucedem
num movimento contínuo, indicando as diversas formas de tirania que regulam a
trajetória existencial e relega tudo à inexorabilidade do esquecimento ou
revela um baú de espantos.
É
raro encontrarmos num autor estreante essa capacidade de reproduzir o universo
de suas experiências pessoais com sobriedade e sem os vícios das inclinações
sentimentais ou excessos nostálgicos impregnados de autobiografia. Marcos
Vinícius visita o passado, a sua memória ancestral, o coração vulcânico das lembranças
afetivas e constrói personagens e situações encontradiças em qualquer lugar,
sem repetir a pieguice, criar inverossimilhanças ou requentar o velho estilo
dos que buscam um encontro de contas com sua geração, com seu mundo ou com seu
passado.
Nesses
contos, o autor explicita, com elegância, refinamento e um lirismo sutil, um
mundo comum e sem novidades, mas permeado de conflitos, perdas, solidão e
silêncios. O desafio de evitar as caricaturas e excessos que as histórias do
dia-a-dia comportam facilmente, foi vencido com o talento e a sofisticação de
uma linguagem diáfana, entremeada de alusões aos mestres e analogias a
lendas da cultura universal. Delicadamente, prestigiou a linguagem em vez da
forma, provando que em literatura é possível falar do trivial sem cair na
simplificação ou redundância e que o único meio de encontrar a eficácia da
comunicação é a própria mensagem.
Desfiando
o fio da meada de labirintos emocionais, recolhendo os cacos de espelhos
partidos, tentando entender a fragilidade das relações, auscultando diálogos hibernados pela falta de
comunicação ou enterrando seus mortos, a sua escrita vai costurando uma espécie
de balanço bandeiriano da “vida que poderia ter sido e não foi”. Nisso o autor
se contrapõe à visão nihilista ou cética da vida, para esboçar no tempo vivido
pelos seus personagens toda sua carga metafórica e imagética que traduz a
dimensão humana. E para a competente
manufatura de cada trama concorreu a destreza de artesão até mesmo na escolha
de epígrafes, que funcionam como um sensível diálogo temático com outros
colegas de ofício, conferindo um novo
significado à banalidade de histórias provinciais e quotidianas.
Marcos
Vinícius é um autor de modelagem clássica, machadiano, tradicional, naquilo que
a tradição tem de riqueza, estilo e exemplo; e no que se refere à exigência de
responsabilidade no ato criativo, como nos informa, por exemplo, a literatura
de um Graciliano Ramos.
Inicia
com grande segurança sua trajetória literária pelos braços da ficção, algo raro
num momento em que muitos autores desviam-se pelas vertentes sedutoras dos
modismos e das impactâncias formais. Preferiu o caminho inverso, que prima pelo
tratamento da linguagem e o bem contar uma história, seja ela corriqueira,
insignificante ou inusitada. E o faz com inventividade, desenvoltura e
ritmo, iluminando com a sua experiência
de leitor e com o seu faro aguçado de professor, os detalhes e as
reentrâncias psicológicas de suas criaturas, flertando com a poesia, a
filosofia, a história e as artes em geral, enfim, uma literatura que transcende
o mero espectro narrativo para instaurar sua interface com outras linguagens e
expressões.
Sem
dúvida, estamos diante de um autor que merece um lugar em nossa bibliografia e
esta singular e amadurecida estréia veio demonstrar que “Uma e outra forma de
tirania” é apenas o iceberg de futuras e agradáveis surpresas, seguramente
abrindo caminho para uma carreira ascendente,
que se consolidará sem muito esforço ou favor.
Uma
e outra forma de tirania
Marcos Vinicius Ferreira de Oliveira
Coleção Rocinante
Ronaldo
Cagiano é escritor e crítico literário.