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Gramíneas - Vôos Imaginativos de Caio Porfírio Carneiro

 

Hilda Gouveia de Oliveira

 

Acabo de ler mais um livro de Caio Porfírio Carneiro, uma coletânea intitulada Gramíneas, de que fazem parte contos curtos, um esboço de peça de teatro, poemas bem construídos e sensíveis, e uma irônica proposta de entrevista. Neste livro, mais uma vez,  o autor expõe sobretudo o seu já bem conhecido poder de concisão e a sua maneira escorreita e simples de utilizar a língua portuguesa. Naturalmente, “civilizado” e urbano, e vivendo há mais de meio século na cosmopolita e elitizada cidade de São Paulo, ele continua dotado de um nordestinismo de cacto espinhento por fora, mas úmido de coração, terno, facilmente emocionável, cheio de boa-vontade para com os seres humanos, mesmo reconhecendo que, em geral, eles pouco valem!

Alguns contos da  nova coletânea são dolorosamente brutais; apesar disso, embora travestida pela ironia, o que mais ressalta dessa larga cópia de incidentes infelizes é a sensibilidade piedosa do escritor, o espírito compreensivo de quem conhece a miséria humana, de quem misericordiosamente perdoa os pecados daqueles que, em geral, “não sabem o que fazem”, ou que agem de acordo com impulsos que lhes vêm de fora, de alguma forma estranha do destino ou...da sociedade perniciosa, y compris a incúria governamental...

 Para Caio, a culpa individual é sempre duvidosa e, dadas as circunstâncias em que ela ocorre é, em geral, até certo ponto perdoável e, assim, nenhum de seus personagens é inteiramente culpado, pois há em sua história  um fluido de injustiça social, doméstica ou política ou econômica, a embaralhar-lhes os caminhos; além disso, todos eles pertencem às classes inferiores da sociedade, ou à baixa classe média, e dessa sua condição infeliz derivam os problemas de sua futura ganância e de imoralidade. Desse modo, o que mais transparece no livro  é uma aura de melancólica e simpática misericórdia por parte do autor, a fraterna solidariedade de quem, cuja alma, como a de um jovem romântico e generoso, deseja resgatar o Brasil das unhas cavilosas e hipócritas de ricos impiedosos. Portanto, a sua visão romântica o autor conservou na maturidade, transformada em compreensão, e não em repulsa a quem foram negadas as oportunidades de sucesso ético e moral, social e econômico.

Evidentemente, esse seu envolvimento  emocional  com os  personagens deriva da intuição do escritor quanto a um mundo menos injusto, e está firmado em sonho semelhante ao observável na obra de autores, como, entre tantos outros, Camus e Sartre, Dickens, Jorge Amado ou Émile Zola, Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz, Tolstoi ou Dostoievski, D. H. Lawrence, Eça de Queiroz e, guardadas as suas especificidades, Wiilliam Faulkner, e cuja ficção reflete a realidade  ambiente, para discuti-la e para repudiá-la. Também Caio julga a realidade através de emoção contida e de consciência humanitária, explorando o cativante paradoxo romantismo-realismo e, como os referidos autores, recorrendo ao mito do paraíso terrestre reencontrável.

No caso das histórias de Gramineas, ao relatar cada incidente da trama, o contista leva o leitor a discutir consigo mesmo sobre a justeza ou a desvalia do comportamento de personagens submetidos a misteriosos desígnios alheios. Guardando a sua característica parcimônia em termos narrativos e temáticos, é com naturalidade que ele cria personagens, diálogos, descrição, e ação narrativa, sem que haja em seu texto qualquer palavra excedente ou afirmações supérfluas. Dotado de habilidade como contador de histórias,  prestigiando o diálogo e o gesto, construindo narrativa muito dinâmica, ele se  mostra, antes de tudo, um cultor da forma exata, da palavra bem aplicada, da frase harmoniosa, dos períodos ágeis e bem estruturados.

Portanto, com esta nova obra, Caio Porfírio Carneiro indica que, se a maturidade cortou-lhe em parte os exagerados vôos imaginativos, ela lhe vai aperfeiçoando mais e mais os instrumentos narrativos e a ironia, o senso crítico e a visão humanitária, ao mesmo tempo em que conserva e amplia aquele nordestinismo feito de rigor e  generosidade, inundado de larga cota de “leite da ternura humana.”

Hilda Gouveia de Oliveira é escritora, professora, historiadora, pós-graduada

em Literatura e membro da União Brasileira de Escritores.