O Copo Azul
Já eram as ânsias da morte. Eram,
sim. Observava-a detidamente ali se contraindo em dores na cama, rolando para
um lado e outro, olhos esbugalhados, a boca a abrir-se desmesuradamente, como
sufocada, buscando ar. E vinham as caretas de dor. As mãos não paravam.
Comprimia os seios, rasgava o vestido róseo. Encolhia e estirava as pernas, a
saliva escorria do canto do lábio, trêmula, e o som rouco e o gesto dos dedos
da mão pareciam pedir-lhe socorro. E ele olhava fixo para o copo azulado, ali
na mesinha.
Perdeu
a coragem de continuar a vê-la nessa agonia. Pensava que fosse mais rápido e
tranqüilo. Foi recuando, recuando. Saiu do quarto, ganhou a rua, um tanto
desnorteado. Tudo deserto àquela hora. Caminhou rápido até a esquina, dobrou-a.
Viu-a à janela. Fez-lhe sinal. Ela fechou a janela e apareceu à porta, nova,
esbelta, risonha. Fez-lhe novo sinal e ela o acompanhou. Entraram na folhagem
espessa do jardim, ali próximo. Beijaram-se alucinadamente. Ela o olhou
curiosa:
-
E então?
-
Creio que a dose foi muito forte. Não sei quanto bebeu. O copo é escuro. Ela
ficou lá em convulsões.
-
Depois dessas convulsões, adeus. Vamos brincar um pouco aqui. Deixar passar
umas duas horas.
Ela, tão jovem, tão bela,
ajeitando ainda o vestido, arrastou-o depois de volta pela rua deserta e
ensolarada. Ele resistiu para entrar em casa. Ela, decidida, olhou para um
lado, para outro. Ninguém. Ele deixou escapar uma ponta de arrependimento:
-
É minha mulher... sua tia...
Ela
o puxou pelo braço:
-
Era sua mulher, era minha tia. Vamos.
Entraram
pisando em ovos, ouvindo os próprios passos. Foram diretos ao quarto. O susto
dele foi de surpresa. O dela de perplexidade. A cama mostrava-se bem arrumada,
fronhas e lençóis novos. A mesinha sem o copo azulado.
Caminharam para a sala de
jantar. Os olhos dela irrequietos. O
coração dele quase parado. E petrificados ficaram quando viram a mesa posta,
xícaras à frente das cadeiras de encostos altos, os bules de louça fina.
Biscoitos. Tudo bem posto sobre a toalha de pequenas estrias amareladas.
Ela,
à cabeceira, bem vestida e cabelos prateados bem penteados, pronta para
comandar a recepção. Encarou-os com ternura, gesto convidativo:
-
Sente-se, meu marido. Sente-se, minha sobrinha.
Obedeceram como autômatos. E como
num sonho viram que pessoas austeras, olhos neles, saíam de outro quarto e
silenciosamente sentavam-se à mesa.
Ela,
à cabeceira, meio sorriso de ironia, abriu uma caixa de papelão ali ao seu lado
e dela tirou, para todos verem, o vestido róseo rasgado. Exibiu-o para a
sobrinha:
-
Olhe, querida, há vários rasgões nele. Você elogiou sempre este meu vestido
róseo, inclusive o meu marido. Está praticamente imprestável, não acha? Uma
prova a mais de que fui sempre uma boa artista dramática. Muito lhe ensinei de
dramaturgia. Mas você, minha sobrinha, nunca passou de uma insignificante
figurante.
Jogou
o vestido e ele foi cair no colo da sobrinha, que não fez um gesto.
Ela,
altaneira à cabeceira da mesa, abriu um gesto largo:
-
Vamos à ceia. Sirva-se, minha sobrinha. Sirva-se, meu marido. Você sempre
gostou do chá desta hora. Sirvam-se todos.
Apontou
para os bules. Erguendo-se, em gesto teatral, levantou o guardanapo que cobria
uma louça, no centro da mesa. Como entrando em cena, apareceu o copo azulado
que o marido lhe dera, com um néctar dos deuses, como ele lhe dissera. E ela
insistia:
-
Sirva-se, meu marido. Sirva-se, minha sobrinha. Sirvam-se todos.
O
marido flutuava. A sobrinha, gélida, flutuava.
E
ela, sempre altaneira, à cabeceira, avisou:
-
Depois estes senhores vão querer ouvir a história do conteúdo desse belo copo,
que ganhei de presente. Obrigada, querido, pelo presente. Obrigada, minha
sobrinha. Quem sabe você sugeriu a cor. Você sempre foi boa para isto, me deu
bons palpites nas minhas compras, lembra-se Mas creio que não é lá grande coisa
em néctar divino.
Sorveu
um gole de chá, trincou uma ponta de biscoito, pegou um pedacinho dele, mirou o
alvo, jogou-o em direção ao copo azul. Olhou para o marido, para a sobrinha,
para as visitas, riu feliz:
- Acertei.
Caio Porfírio Carneiro é escritor, crítico literário e secretário administrativo da UBE.