ATÉ QUANDO, JUDAS?
Tinha eu os meus catorze anos e era o melhor aluno
do catecismo, ministrado pelos padres sacramentinos, da igreja de São Benedito,
em Fortaleza. Não o catecismo de ensinamentos religiosos iniciais. Algo mais
profundo, mergulhos primeiros no estudo dos evangelhos e da teologia católica.
Eu comungava todos os domingos e a religião era a continuação do meu lar e da
minha vida, que se abria para a puberdade.
Um
dia, lembro-me bem, doeu-me fundo diante do espetáculo da malhação de Judas, na
Semana Santa. Perguntei, quase sem querer, a um dos padres, porque a igreja não
protestava contra aquilo. Ele se espantou com a minha pergunta, praticamente
julgando-a ousada, e repetiu o refrão de sempre: ele traiu Jesus.
Recordo-me
que, a partir de então, eu, caindo talvez em pecado, passei a não aceitar
aquele silêncio da igreja. Nada em defesa de Judas, claro, que eu não chegaria
a tanto. Ele fora, porém, um ser humano e os próprios padres diziam que até
durante os estertores do enforcamento, pelas próprias mãos, balançando-se no
galho da figueira, poderia ter se arrependido da maldição do seu beijo e, por
isto, ter-se salvo das penas eternas do Inferno.
Eu
não tinha idade para analisar nada, mas tinha pena, e fazia tudo para não
tê-la, da tragédia de Judas. Não conseguia engolir mais __
e isto me chegou de repente __ a
malhação continuada de Judas. Era pancada demais, ano após ano, do fundo do
passado, em cima de um homem.
Fui
me afastando da igreja por outros motivos. Crescia-me diante dela,
sombreando-a, apagando-a, a figura de Luís Carlos Prestes. Ribombava-me nos
ouvidos o troar dos dez mil canhões soviéticos no cerco de Berlim. De religioso
piedoso passei, com outros jovens, a gritar contra o imperialismo americano.
A
figura de Judas, porém, e não me perguntem por quê, não morreu dentro de mim. A
cada malhação a que é submetido tem, da minha parte, pronta solidariedade.
Na
faculdade estudei muito as religiões, que me formei em História, e o tema
sempre me fascinou. Não é assunto para abordar aqui, uma saudosa página de
reminiscência. Nada, portanto, da traição e da figura doce de Cristo. Apenas o
estigma que malha Judas e vem de muito longe, e o silêncio e até a aceitação
disto, humilham-me. Uma tradição mesquinha, que um moço de catorze anos, diante
do padre perplexo, não pôde aceitar.
Lendo
o Evangelho de Judas, de vertente gnosticista dos primeiros séculos do
cristianismo, pergunto-me se a reação daquele jovem de catorze anos foi um
impulso de piedade ou se quis ele __ tão
moço e tão fervoroso na sua fé __ meter-se,
já então, mal saído da casca do ovo, na discussão, hoje bastante viva, sobre
essa personagem contraditória, nos caminhos da fé e da história da cristandade.
Quousque
tandem?
Caio
Porfírio Carneiro é escritor, crítico literário e secretário administrativo da
União Brasileira de Escritores.