?Raquel Naveira
?bom beber das águas puras da inspiração lírica nas cantigas trovadorescas portuguesas!
A
primeira época da Literatura Portuguesa inicia-se em 1198 (ou 1189), quando o
poeta trovador Paio Soares de Taveirós dedica uma cantiga de amor a Maria Pais
Ribeiro, cognominada A Ribeirinha, favorita de D. Sancho I ?e finda em
1418, quando Dom Duarte nomeia Fernão Lopes para o cargo de Guarda-Mor da torre
do Tombo, ou seja, conservador do arquivo do Reino. Durante esses duzentos anos
de atividade literária, cultivaram-se a poesia, a novela de cavalaria e livros
de linhagens.
De
origem obscura, o lirismo trovadoresco instalou-se na Península Ibérica por
influência provençal, isto ?originada da Provença, região sul da França. Na transladação,
sofreu o impacto do novo ambiente e alterou algumas de suas características. A
principal modificação foi o fortalecimento do aspecto platonizante
da confidência amorosa: dentro do trovadorismo português, o ponto mais alto do
processo sentimental situava-se antes de a dama atender os apelos do
apaixonado. Duas eram as espécies de poesia trovadoresca: a lírico-amorosa, expressa em duas formas, a cantiga de amor e a cantiga
de amigo; e a satírica, expressa na cantiga de escárnio e maldizer. O
poema recebia o nome de “cantiga?pelo fato de o lirismo medieval estar
associado ?música: a poesia era cantada, entoada, instrumentada. Letra e pauta
andavam juntas.
A
cantiga de amigo possuía um eu lírico feminino, pois se tratava do ponto
de vista de uma mulher solteira e não submetida às convenções matrimoniais.
Essa mulher do povo (pastora, camponesa) se dirigia ao amigo, ?mãe, às irmãs e
amigas ou?a algum elemento da natureza.
Era uma mulher ora ingênua, ora experimentada, ora compassiva, ora calculista.
O amor físico tinha importância relativa , pois o clima era de amor cortês, de
emoções vivenciadas com a presença dos ciúmes e ressentimentos, de
reivindicações da liberdade de amar perante a intervenção materna. Os cenários
eram os campos, as fontes, os rios, árvores e flores, ou ainda ambientes
domésticos e da corte. A mulher vivia em intimidade afetiva com a natureza,
muitas vezes conversando com ela, como se ela fosse sua confidente.
?
interessante que o poeta era um homem, um trovador, dando voz a uma
personagem-mulher, aos interesses femininos. Quem escreveu lindas canções com
um eu lírico feminino, como Valsinha, foi Chico Buarque, demonstrando
sensibilidade, delicadeza, capacidade de se colocar na pele do outro e formação
lírica calcada na mais tradicional poesia portuguesa.
Lembrei-me
de uma antiga canção de carnaval que diz: “Linda pastora/ Morena da cor de
Madalena...?A pastora ?personagem saído das páginas da poesia trovadoresca
portuguesa.
Meu
av?português comentava que em sua aldeia, Figueira da Foz, era comum
deparar-se, at?os dias de hoje, com pastorinhas de ovelhas e de gansos pelas
ruas.
A
cantiga de amigo respirava realismo em toda sua extensão, em contraste
com o idealismo da cantiga de amor. O vocábulo amigo significava namorado
e amante. Conforme o lugar ou as circunstâncias em que transcorre o episódio
sentimental, a cantiga recebe o título de cantiga de romaria, serranilha, pastorela,
marinha ou barcarola, bailada ou bailia,
alba ou alvorada. Essas configurações
da cantiga de amigo traduzem os vários momentos do namoro, desde a alegria da
espera ou do diálogo entre moças acerca de seus amores, at?a tristeza pelo
abandono ou a separação forçada.
Recebi
em 2004 o convite para escrever um poema que abrisse o livro de fotografias Flores
do Cerrado, do engenheiro agrônomo Luciano Bassan,
publicado em parceria da Bayer com a SEMA (Secretaria de Estado do Meio Ambiente ) e Governo Popular de Mato Grosso do Sul. Um livro
que ressalta a beleza e exuberância das espécies nativas do cerrado brasileiro:
flores de cores e formas surpreendentes com seus nomes populares e científicos.
Folheando o?livro que est?dividido em
duas partes: solo úmido e solo seco, tive a idéia: uma cantiga de amigo,
uma camponesa colhendo flores, uma melancólica alma portuguesa em terras do
cerrado e assim nasceu o poema Flores do Cerrado, que transcrevo, depois
de trechos em epígrafe de uma bailada medieval do trovador J. J. Nunes:
“Ai flores, ai flores do
verde pino,
Se sabedes novas
de meu amigo?
?Ai, Deus, e u ?/span>??/span>
?“Bailemos nós j?todas
três, ai amigas
?So aquestas avelaneiras frolidas.?/span>
(J. J. Nunes, Cantigas d‘Amigo-
cantigas medievais portuguesas)
Vamos,
amigas,
Colher
flores do cerrado,
Levemos
uma cesta
Para
os galhos aveludados,
Formemos
um ramalhete
Para
o noivado.
Vamos,
amigas,
Pelo
campo fechado,
Entre
nuvens e névoas,
Seguindo
a trilha
Do
arado
?
flor da terra.
Entremos
nessa mata de planalto,
Nesse
horto tortuoso,
Desçamos
as encostas
Ao
longo do rio.
Aqui,
Onde
o jardim ?denso
E
o caminho apertado,
Colhamos
as mais belas flores do cerrado,
De
essência e sopro,
De
água e fogo matizado.
Vamos,
amigas,
Colhamos
essas taças de orvalho,
Essas
criaturas instáveis
E
perfumadas
Como?os prazeres
E
as bebidas.
Vamos,
amigas,
Coloquem
na cesta
Malvas
brancas,
Helicônias alaranjadas,
Pêndulos
de mamona,
Juremas
e douradinhas,
Juquiris e mimosas,
Carobinhas violetas,
Algodão
do campo,
Amores
lilases,
Pétalas
azuis de alcaçuz,
Ciganinhas amarelas,
Estames
longos
Como
plumas voadeiras;
Salpiquemos
as flores
Com
chuva de primavera,
Raios
de aurora,
Cantos
de juventude;
Gotas
preciosas de virtude.
Vamos,
amigas,
Nesta
cesta
Est?
nossa alma,
Nosso
peito de amor carregado,
Perfeita
floração
Deste
campo de cerrado.
Sou
mesmo menina, camponesa antiga, com séculos de poesia nas veias, entre as
flores do cerrado.
BIBLIOGRAFIA
-BASSAN,
Luciano. Flores do Cerrado. Campo Grande/MS:
Editora, 2004.
-MOISÈS,
Massaud. A Literatura Portuguesa através dos textos.29?ed.
São Paulo: Cultrix., 2004.
-OLIVEIRA,
Gizelda Maria Almeida de. Sínteses?Literárias- Literatura Portuguesa. Andradina/SP: Estrela Gráfica, 2001.
Raquel
Naveira ?escritora, professora universitária e
crítica literária.