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Uma Cidade ao Entardecer Rodolfo Konder Ao
fim do dia, ela se deita ao lado do Rio da Prata. As ruas são largas e arborizadas. As
pessoas, elegantes. No velho Puerto Madero, obsoleto desde os anos 40, a prefeitura e a
iniciativa privada se uniram para transformar os antigos prédios de tijolos
num infindável conjunto de excelentes restaurantes, que se estendem,
impecáveis, até os horizontes derradeiros da gastronomia argentina. O sol se põe sobre o
parisiense bairro da Recoleta. Ilumina com
suavidade os prédios da Avenida Alvear, a praça em
frente ao cemitério (que abriga o túmulo da família Duarte – Evita dorme ali
o sono dos séculos), o Design Center, o Café de la Paix, o
Biela, os antiquários, o Alvear Palace Hotel, o Páteo Bullrich. O dia vive o conflito final e dramático entre a
luz e a sombra. São sempre 5 horas
da tarde, nos cafés de Buenos Aires. Na Calle Suipacha, duas mulheres idosas tomam chá na Confiteria Ideal. (Talvez estejam ali desde os anos 30.)
Na Florida, um homem de cabelos brancos bebe um “cortado” no Café Richmond. Ao lado, um cavalheiro solitário, terno e
gravata, colete e bengala, lê o diário El
Charin. No Café Tortoni,
ainda se pode ouvir a voz de Jorge Luís Borges, comentando como a cidade é
azul na primavera. A luz do entardecer
cai sobre os prédios de arquitetura francesa, na Recoleta;
sobre a paisagem triste do Onze; sobre a mitológica região de Palermo, com
seus personagens marcados pela coragem física, seus duelos a faca, suas milongas, seus campos abertos e as arvores seculares da Calle Guatemala; sobre as velhas casas italianas de
Almagro e Balvanera; sobre a Galeria Pacifico e as
ruas movimentadas do centro. O crepúsculo também
chega aos pátios, às cancelas, aos terrenos baldios, às figueiras e às
esquinas rosadas da zona sul, com seus bairros velhos – Santelmo, Montserrat,
Constitución, Barracas – e suas estreitas ruas de
pedra. O dia esmorece e a
noite se aproxima dos modernos edifícios junto das águas do rio ou das casas
mais antigas. Logo será noite, por exemplo, na sede da Sociedade Argentina de
Escritores, com seu pátio axadrezado e seus balcões, na Calle
México, 524. Nessa cidade
sensual, em outras tardes que já se apagam na memória, vivi momentos de amor
intenso, de paixão. Conversei com Ferreira Gullar, tomei café com Edgar Triveri, ouvi as análises políticas de Isidoro Gilbert. Aqui, visitei o velho Rodolfo Ghioldi, a quem devo meu nome. Li a noticia da minha fuga
do Brasil, na edição de 14 de marco de 1976, do jornal La
Prensa. Conheci Augusto Montesinos e fiz a
cobertura do regresso de Perón à Argentina, depois de um exílio de 18 anos. Estive em Buenos
Aires em dias frios e no verão. Dormi em diferentes hotéis. Comi nos melhores
restaurantes. Andei pela cidade inteira, fiz compras, participei de
seminários. Meu convívio com ela se deu em circunstancias as mais variadas,
como durante uma fuga do Brasil, ou na realização de reportagens e pesquisas.
Mantive inúmeros contatos com autoridades da administração municipal, da área
da cultura – assinei até um convênio de cooperação cultural com elas, anos
atrás. Mas pude ver melhor a alma portenha ao ler Jorge Luis Borges. Borges nasceu em
Buenos Aires. Morou na Rua Tucuman, no bairro de
Palermo, na Avenida Quintana, em Puerreydon e Anchorena, na Rua
Esmeralda e na Calle Maipu,
994, sexto andar, esquina de Marcelo T. Alvear.
Conheceu profundamente essa cidade, imergiu em sua alma – “en mis suenos siempre estoy en Buenos Aires”, escreveu. Dizia que a imagem da cidade
que mais o comovia era “a luz do entardecer sobre as casas do subúrbio”.
Buenos Aires é, de fato, uma cidade à luz permanente do entardecer. Rodolfo Konder é escritor, crítico literário e conselheiro da
União Brasileira de Escritores. |
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