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Corpo a Corpo com a VidaNelson Hoffman ?João Antônio Fábio Lucas mandou-me um livro que me atingiu o coração e a memória.
J? s?o fato de ser um livro vindo de Fábio Lucas, s?esse fato j?mexia
comigo, tocava, que a remessa era de sumo orgulho para este pobre rabiscador
de beira do rio Iju? arranchado em terra missioneira e fronteiriça. A
memória, porém, essa foi acordada pelo livro.?
Fábio Lucas ?homem
de metrópole, respeitado na alta intelectualidade, sua palavra ?sempre
ouvida com devoção. Justificado, pois que ele se alinha entre os primeiros
nomes de nossas Letras e o que fala, ou escreve, sempre repercute e provoca
reflexão. E, importante para mim!, noto-o sempre cavalheiro e elegante como ?
próprio de toda inteligência superior e, também importante, sempre tranqüilo
e simples como soem ser os mineiros ?e Fábio Lucas ?mineiro da gema. Por
tudo isso, talvez, que volta e meia ele se lembre deste roceiro perdido na
“Terra e Sangue das Missões? Como se lembrou
desta vez, em toque de sutileza emocional, que não suspeitou, por certo. A
emoção estava em mim, debaixo de cinzas. O livro que Fábio
Lucas me presenteou ?“Cartas aos Amigos Caio Porfírio Carneiro e Fábio
Lucas? de João Antônio. O livro ?de agora (Ateli?Ed., 2005) e, como ?
fácil deduzir, s?pode ser póstumo, contendo cartas (excertos) de João
Antônio aos mencionados amigos. Além das cartas, h?comentários, sobre João
Antônio, de Caio Porfírio Carneiro, Fábio Lucas e, por referência deste, de
outro mineiro ilustre, Manoel Lobato. A leitura das cartas nos introduz,
pouco a pouco, na vida, no pensamento, na sensibilidade, na visão de mundo
desse que foi um dos maiores contistas brasileiros do século XX: João Antônio
Ferreira Filho. Em Literatura, s?
João Antônio. Nascido em 1937, em São Paulo, faleceu no Rio de Janeiro, em
1996. Jornalista, escritor, irrequieto e viajador,
palestrante, gostava de conversas com estudantes, mas seu mundo era o
submundo das grandes cidades. Isso fica mui claro pela simples citação de
alguns títulos de sua obra: “Leão-de-Chácara? “Casa de Loucos? “Lambões de
Caçarola? “Malhação do Judas Carioca? “Dedo-Duro? “Abraçado ao Meu Rancor?
e outros. Sobretudo, porém,
destaque-se “Malagueta, Perus e Bacanaço? Este ?o primeiro livro de João
Antônio e foi por causa deste livro que a emoção sacudiu-me
cinzas quando recebi “Cartas aos Amigos Caio Porfírio Carneiro e Fábio
Lucas? O “Malagueta,...?foi publicado, pela
primeira vez, em 1963, pela Ed. Civ. Brasileira S. A., do Rio de Janeiro, RJ,
na coleção “Vera Cruz? volume 47, após receber o Prêmio Fábio Prado para
Contos. O desenho da capa ?de Eugênio Hirsch e o texto das orelhas ?
assinado por Mário da Silva Brito. O desenho, sobre fundo arroxeado, sugere
malandros, tacos de sinuca e caçapa, prostitutas...?O que, aliás, ?o próprio conteúdo do
livro, como certifica Mário da Silva Brito: Seu mundo (de João
Antônio) ?o das criaturas sem eira nem beira; dos operários...; das
criadinhas namoradeiras...; dos soldados e das casernas...; das crianças
abandonadas...; dos jovens...; das prostitutas... Detalho isso porque
ali est?o cerne das lembranças que Fábio Lucas despertou em mim. Dentre
muitas, duas: Em 1963 eu morava em
Porto Alegre. Todo dia passava pela Livraria do Globo, na Rua da Praia. Nas
vitrines, novidades eram destacadas. Eu entrava e vistoriava, ficava a
folhear aqui e ali, procurando, namorando livros. Aparecendo desconhecidos,
então, esses me eram de especial atenção. E ainda são, que
o mundo da aventura ?a busca do desconhecido. Sempre fui
aventureiro e a aventura do espírito ?a maior de todas. E a leitura de um
bom livro ?a aventura espiritual por excelência. Um dia apareceu
exposto ali, na Globo, um tal “Malagueta, Perus e
Bacanaço? Um livro de nome estranho de um certo João Antônio, nada mais.
Como nome de escritor, nada sugeria e, de renome, muito menos
significava.?Quem seria? Levei o livro. Li.
Dias depois, em nossa república de estudantes, um esnobe de inteligência
considerou o livro, fiscalizou, observou: - Não sei por que
o Nelson compra essas porcarias. Demorei pra
responder, fiquei pensando no que dizer. A convicção íntima j?estava formada
desde o meio da leitura do livro: eu estava diante de um novo mestre do conto
brasileiro. Comentei: - Olha, meu, esse
cara a??um baita escritor, ?dos eleitos. Pode anotar: Lima Barreto,
Machado de Assis, mais alguns, e esse a? esse João Antônio. Anota! Tempos depois, quase
vinte anos, década de 80 entrando, estava eu na Faculdade de Letras, em Iju?
RS. Pausa de aulas, o burburinho de alunos e professores, o salão, que era o
bar, regurgitava. L?adiante, por sobre cabeças, avistei a cabeça loira da
Soila, esposa do escritor Deonísio da Silva. Vinha acompanhada de um estranho
e movia-se como quem procura. Ergui o braço, ela viu-me e acenou, chamando.
Encontramo-nos: - Conhece? ?perguntou ela,
mostrando o companheiro. Considerei,
parecia-me ter visto, eu conhecia, não sabia de onde nem quando. Apertei os
beiços, mordisquei, em dúvida. Ela: - João Antônio. O abraço foi amigo e
quase longo. De repente, afastei-me um pouco, sem nos largarmos, fitei-o nos
olhos: - Sabe, aquele
seu livro, o primeiro, o “Malagueta, Perus e
Bacanaço? aquele da capa roxa? - Sim. - Eu tenho. Ele embasbacou-se: - Voc?tem?! E voltou o abraço, estreito
e quente, um dos mais humanos que eu j?vivi. Foi longo, parece que ainda
sinto, o calor permanece. E ?certo que ainda escuto a emoção: - Isso eu nunca
ouvi! De ninguém. Essas e mais
lembranças a gentileza do Fábio Lucas me acendeu.
João Antônio foi grande escritor e admirável ser humano. Esse lado humano
vibra inteiro nas “Cartas aos Amigos Caio Porfírio Carneiro e Fábio Lucas? ?
normal, aliás, que cartas amigas são sempre confissões. João Antônio viveu o
que escreveu... ou escreveu o que viveu? A vida era a
essência de João Antônio, a vida dos humildes, desafortunados, marginais. A
esses, no embate pela sobrevivência, fez a justiça que a sociedade sempre
negou. E nega. Aliás, bem de acordo com seu conceito de Literatura... - Literatura? Um
corpo a corpo com a vida. Nelson Hoffman??autor de Este Mundo ?Pequeno.
E-mail: n.hoffmann@via-rs.net. |
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