EGOTIME
- As Biografias
Hersch Basbaum
O que se espera quando se escreve a biografia de alguém? Sem
dúvida, perpetuar a sua memória, registrar sua passagem pela efemeridade da
vida e apontar os fatos que o tornam merecedor de tamanha distinção.?Ou se busca contribuir para a história, de uma forma geral, apontando as contribuições de um indivíduo
em particular em determinado momento ou se pensa em glorificar certa
personalidade e certo caráter que possam servir de exemplo do que se deve e do
que não se deve fazer. De toda maneira, espera-se estar apresentando um
trabalho que faça jus ?memória de alguma figura humana.
De certa forma,?um dado livro poderia ser apenas mais uma
obra?de biografia, a ser oferecida ao
público, que não causaria, enquanto tal,?
surpresa a ninguém. Sem dúvida??
notória a existência, de uns tempos a esta parte, de um verdadeiro boom de publicações contendo
biografias. Em outras palavras, ?crescente a participação das biografias
dentro da relação dos livros publicados no Brasil e, talvez, no mundo.
Nos estados Unidos,
cerca de 18% dos livros publicados são biografias e, vinte anos antes,
representavam menos de 10%.
Um conhecido professor
de estética, na USP, j?pôde colocar o questionamento básico: A que se deve
este fato??Estar-se-ia sinalizando o fim
da narrativa ficcional?
Curiosamente, ao tempo
em que me ocupava com a coleta de informações sobre o tema, um articulista da
Folha de São Paulo fez publicar?um
artigo intitulado O FIM DA FIC?/span>ÃO,
onde dizia: quem corta a mão e escreve sua experiência real com os pés, tem
mais?chance de virar best-seller do que o livro de um autor?que escreve com as mãos a história de um
personagem de ficção que cortou as duas mãos e redige com os pés.
E o jornalista vai
mais além, acrescentando: Vivemos na época do romance de não ficção, novo gênero com que se tenta abolir a idéia de
ficção para atender maior demanda de mercado.
?/span>E porque isso? Muitos arriscam explicações que
tangenciam as seguintes idéias:
?/span>fim das
utopias, que se constituíam em importantes bases inspiradoras de contos,
romances e novelas, especialmente os que envolviam crítica social, heróis
populares, posicionamentos políticos, etc.
?/span>uma
afirmação do sistema hegemônico, capitalista, onde sempre se procurou valorizar
o indivíduo e suas realizações.
?/span>perda de
valor do ideário das?saídas coletivas, das soluções
gerais, para as angústias, injustiças, sofrimentos?e outros problemas do cotidiano:?individualização dos caminhos.
?/span>fabricação
excessiva de novos?“heróis?e exposição
exacerbada dos mesmos: seja no esporte,
no cinema, na televisão, nas ciências e nas artes em geral. Uma nova hagiologia.
?/span>alteração do
conceito de ficção nesta pós-modernidade, momento em que se fala de realidade
virtual, quando o próprio mundo supostamente real j??ficcionado.
Refletindo sobre
algumas biografias de?celebridades
lançadas recentemente pude identificar certas questões?que ilustrarão alguns pontos básicos sobre os
quais gostaria de tecer alguns comentários - cada obra com conceito e
formatação diferente - para que se entenda bem o meu trabalho. Todas, supostamente, têm o propósito de
apresentar, caracterizar e definir dado personagem.
a. Billy Wilder: no livro de Hellmuth
Karasak, lançado pela DBA, com o título Billy Wilder ?O resto
?loucura, o autor narra a trajetória de BW usando como recurso uma
longa entrevista feita com o próprio biografado, complementada com referências
a seus filmes e a fatos pitorescos relacionados com o?making of
dos mesmos utilizando-os como parte da construção da personagem.?“Muito
antes de BW se tornar BW ele j?se comportava como BW??Não chega a ser uma autobiografia ?embora
resvalando em muitas oportunidades, na medida em que Karasak
intervém, corrigindo ou completando informações relevantes surgidas nas
conversações.?Sem dúvida uma forma
interessante de trabalho.?De certa forma
fácil de fazer quando o biografado est?vivinho
da silva.
b. Marlon Brando:?livro assinado por
Robert Lindsay, lançado pela
Siciliano, com o título: Brando
–Canções que Minha Mãe me Ensinou.?
Na verdade, uma autobiografia, onde o famoso ator ditou, para um
terceiro, passagens de sua vida. Embora interessante,?algumas falhas são percebidas:?Omitiu fatos, expandiu outros, retrata-se
como se fosse um verdadeiro herói. Cheio de virtudes.?Ou seja, eu falo de mim o que eu quiser,
quero ser visto do jeito?que acho que
sou. Tenho dito.?Ninguém tem mais nada a
dizer a meu respeito.
c. Leoncio Basbaum: no livro Cartas ao Comit?Central, ?/span>lançado pela Discurso
Editorial, o autor preocupou-se em buscar a chave explicativa para tão?insólita trajetória da vida do
biografado?através de inúmeras cartas
por ele enviadas, aos irmãos e ?direção do Partido Comunista.?Cada carta ?contextualizada, aparecendo
assim, com clareza, o perfil psicológico.
d. Freud:?famosa obra de Peter Gay, lançada pela
Companhia das Letras, onde o autor faz a análise da vida do criador da
psicanálise para explicar a obra.
Sente-se que o importante ?a obra.
e. Marx: interessante livro, de Isaiah Berlin onde repete-se o approach acima descrito:?o importante não ?a vida do biografado, mas
sim as suas idéias.
e. Trotsky: obra monumental, publicada pela Civilização
Brasileira, por Isaac Deutscher, em três volumes (O Profeta Armado, O Profeta Desarmado
e o Profeta Banido) estudo
exemplar e modelo excelente de biografia;
sem dúvida, uma obra militante, o autor era trotskysta,
donde não consegue esconder a paixão (e nem sei se teria essa preocupação) pelo
biografado; reconstituição histórica de um processo histórico; críticas ao
inimigo; sem dúvida, uma obra de ação política.?
Objetividade talvez comprometida pelo conflito com as presumida isenção
e eqüidistância planejadas.
f. Signoret:?outro estupendo exemplo de?paixão pela personagem biografada. Em Signoret, a Lembrança Compartilhada, escrito
por Catherine David, publicado pela Nova Fronteira; descobrimos uma verdadeira
heroína de seu tempo, Simone Signoret, desenhada como
mulher completa, com paixões, temores, desejos,?
sonhos,?em um tempo, ele mesmo
com todas as utopias da transformação social possível ainda vivas e presentes.
g.. Garrincha: magnífica obra de Ruy
Castro, Estrela Solitária, ?/span>publicada pela Companhia das Letras. Apesar do
excesso de detalhes, a figura supostamente real?
do biografado emerge, como se nada houvesse além desses mesmos detalhes.
O denotado e o conotado se confundem. Lembra Marx em seu pensamento: se aparência e essência das coisas se
confundissem não haveria ciência. Em Garrincha, as duas coisas se confundem.
h. Nelson Rodrigues: também de Ruy Castro,
O Anjo Pornográfico, pela mesma
Companhia das Letras, onde a essência da personagem parece diluída no excesso
de detalhes; responsabilidade pela síntese da personalidade ?transferida para
o leitor. Contudo, uma obra que se l?com enorme interesse.
i. Chateaubriand: riqueza e profusão de
detalhes elevados ao paroxismo; a obra
Chat?/span>: o Rei do Brasil, também da Companhia
das Letras, ?span style='mso-spacerun:yes'>?quase um diário da
personagem. Falta o perfil psicológico, supostamente apresentado de forma atomizada através de diferentes e sucessivos
episódios. A leitura faz-se
prazerosamente, entretanto.?Livro
bastante interessante.
j. Sérgio Porto:?eis uma experiência também interessante, onde
a personagem biografada emerge em um relato onde a época e a cidade ?que são
importantes. Dupla Exposição:
Stanislaw Sérgio Ponte Porto Preta, publicado pela Ediouro
.?Escrito pelo jornalista Renato
Mello,?encantado com o Rio de Janeiro
das décadas 50 e 60, temos aqui um livro bastante agradável,
que resgata um tempo em que o Rio era a verdadeira capital do Brasil, no
mais amplo sentido da expressão. Criava e difundia os valores mais
representativos da cultura brasileira de então.
k. Mastroianni: obra perfeita, de Enzo Biági, La Bella Vita,
publicado pela Ediouro, onde são desprezados detalhes
e cronologia, detendo-se nas relações. O personagem ?construído através das
relações que estabelece: com o cinema, com as mulheres, com a Itália, com
Hollywood, família, amores, etc. Mastroianni em si, o
que representa??Na verdade, o que
significa esse em si??As pessoas se revelam nas situações, j?disse
aquele francês. Livro, a meu ver,
perfeito. Após sua leitura ficamos realmente sabendo quem foi Marcello Mastroianni.?Ou talvez o Mastroianni
concebido por Enzo Biági.?E da??
?/span>Eu havia lido, e registrado, que memória ?um
fenômeno individual e psicológico intimamente ligado também ?vida social.?Raramente a figura da pessoa ressurge em?nossos pensamentos flutuando no espaço,
destituída dos épicos nos quais tomou parte em sua trajetória de vida. Esta
varia em função da presença ou da ausência da coisa escrita. Ninguém lembra do
biografado, em sua essência, isolado dos fatos que o marcaram e que ele
estigmatizou.?Ao me dar conta disso,
deixei de me preocupar com a pesquisa e me senti fortalecido?ao ler, em João Ubaldo Ribeiro, genial
escritor baiano,?que?o segredo da Verdade ?o seguinte: não existem
fatos, s?existem histórias.
Esta idéia, a meu ver,
?fundamental para que se entenda o raciocínio aqui exposto.?Ora, resgatada a figura em sua essência,
extraída dos acontecimentos que a formaram, posso inseri-la em outros
reconstruídos.?
Mas a idéia, quando se
pensa em uma biografia,??fazer um livro
tendo esses conceitos em mente.
Note-se, contudo,?que não aspiro?estabelecer aqui nenhuma teoria literária e
nem qualquer?metodologia representando
um sistema, digamos ?/span>cientificamente definido.
Move-me apenas o desejo de criar uma visão autônoma a partir das qualidades
intrínsecas do material fatual colhido em pesquisas,
seja através de fontes secundárias ou por meio de entrevistas com amigos e
conhecidos. Meu único objetivo ?a consciência teórica dos fatos, reais ou
imaginários que se destacam,?e verificar
em que medida podem vir a formar ou compor exemplos da
arte literária enquanto tal.
Da?porque não posso
deixar de me preocupar com sua estrutura literária, com idéias em torno das
questões de descrição e narração:?
exposição circunstanciada feita pela palavra escrita ou falada. Na
comparação entre o narrar e o descrever?
afirma-se que este não consegue operar com metáforas.
?importante observar,
pois, ad argumentandum,
que a crítica especializada havia enxergado, a principio, Os Sertões (Euclides da Cunha) como
obra científica, feita por um geólogo, um etnógrafo, um sociólogo, um
historiador, etc. a ponto de qualificar?
o livro como obra histórico-sociológica. Mais tarde veio a se concluir
que,?na verdade, era obra de um
ficcionista, “um poema épico em prosa
como a Ilíada: não tem a objetividade e fidelidade aos fatos, a imparcialidade
e o respeito a documentos? O acontecimento servia-lhe de estopim para a
explosão criadora; ou seja, o escritor freqüentemente modifica, deforma os
fatos pela lente da imaginação, transfigura-o pelo processo artístico.
Isto ? novamente
sublinhava-se o primado da trama, da construção, sobre o chamado?material fatual.
No caso de biografias,
contudo,?seria?importante admitir a possibilidade do
distanciamento crítico: o não envolvimento com o personagem ou com a época,
cuidando para que a ótica do narrador não altere o fato. A narração cobrando
seu?distanciamento crítico. Além
disso,?verificar as condições de
universalização do particular. Lembro, todavia, que todo fato social ?um fato
histórico e universal.
A propósito, não se
deve esquecer que?qualquer biografia ?
história universal, j?dizia Stendahl e que, para
Goethe,?todo homem ?importante. E contar a sua história ?traçar um enredo.
Para Aristóteles o enredo (ou sua história) ?o traço básico da personagem.
Para uma conclusão
antecipada, valho-me de Kant: belo ?
aquilo que agrada, independente dos sentidos. Em síntese: biografia pode
ser literatura e das mais puras. Mas ?também ficção. Um texto que tem como
real apenas os traços tipográficos.
Ao se pensar no
narrador por excelência, enxerga-se imediatamente aquilo que era dominante no
romance do século?XIX, quando tínhamos
o?narrador impessoal, pretensamente
objetivo, que se comportava como um verdadeiro Deus, não s?por haver tirado as
personagens do nada,?como pela
onisciência de que ?dotado.
Copiei do livro de
Luis Roberto Salinas Fortes (O
Paradoxo do Espetáculo) o poema de J.J. Rousseau?(Quatrain pour un de ses
Portraits) que abaixo transcrevo:
homens sábios na arte
de fingir
que me emprestais traços
tão doces
podeis querer pintar-memas nunca ? pintareis a não ser?vós mesmos
Últimas considerações
para este comentário.?Diz-se hoje que a
ciência ?a teoria do real.?A ciência ?
uma criação do homem.?O homem e sua
razão apreendendo o mundo e processando-o com os seus simbólicos.
Copio e adapto, de
Baudrillard (O Sistema dos Objetos), o trecho a seguir, que ?uma forma?mais complexa de dizer o que João Ubaldo
havia consagrado, conforme sublinhado acima:
?/span>Todo fato social??matéria-prima para o documentarista.?O biógrafo tende a?ser um documentarista, ?preciso lembrar que
a imagem deve ser lida, o
retrato puro e simples quase nunca ?suficiente para definir o conteúdo
real. Os fatos que comumente designamos
como social ou urbano ocorrem no tempo e no espaço, que são as coordenadas
básicas do acontecimento. Cada coisa ?em si inexaurível e cada fato est?
sujeito a interpretação sem limites, e ?
re-interpretação. Se o desejo ?captar o fato de uma determinada forma, ?
preciso constru?lo. Tudo ?real ?sua maneira e, ao mesmo tempo, tudo ?apenas
uma perspectiva.?Todos os fatos são teorias.
Em síntese, todas as
personagens e instituições descritas neste livro não somente?aspiram a
condição?de fatos reais como também se
assemelham extraordinariamente a outras que não têm existência real.
Na verdade, buscar,
identificando, o weltanschauung, ou visão de mundo, ou seja,
uma?estrutura mental coletiva específica
a certos grupos sociais geográfica e culturalmente definidos. Tal estrutura
mental pode concretizar-se, expressar-se em domínios culturais diversos, como a
literatura e em outras artes.
Na definição analítica
dessa visão de mundo que?vamos tentar esboçar, poderão ser
experimentadas algumas abordagens, dentro de certa lógica, formulada em nível
de genericidade o bastante para compreender os traços
comuns que supomos serão encontrados entre os diferentes autores.?
?/span>De nossa conversa pôde ser incorporada a sensação de que a terra natal ?menos um espaço do que
corpo: ?uma pedra?ou uma terra, um vento ou uma seca, uma água
ou uma luz.??nela que
materializamos os nossos sonhos, os quais, através dela adquirem?sua exata substância. Por meio da interação entre os dois, espaço
e?corpo?
?span style='mso-spacerun:yes'>?que reivindicamos nossa cor
fundamental, nosso jeito de ser.
Hersch Basbaum
?escritor, teatrólogo, publicitário e diretor da União Brasileira de
Escritores.