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A Caixa de Sapatos de Carpinejar

 

Ely Vieitez Lisboa

 

 A criatividade poética tem mistérios insondáveis. Teorias várias são elaboradas. Ezra Pound acredita que os poetas são antenas do Universo. Um poema simbolista francês diz que o mundo é um Templo com pilastras e estas ciciam segredos que alguns homens captam. Assim, os poetas são meio videntes e profetas. Sua visão vai muito além da realidade explícita.

O preâmbulo é para comentar o livro mais recente de um dos maiores poetas brasileiros: Carpinejar. Jovem, nasceu em Caxias do Sul (RS), em 1972, filho de outro excelente poeta, Carlos Nejar, faz-nos pensar até em uma possível teoria genética, algo meio improvável. Criatividade, genialidade podem ser herdadas ou são dons, frutos de trabalho sério, persistente e contínuo?

Caixa de Sapatos é uma antologia da Companhia das Letras, publicada em 2003. Traz poemas de quatro obras anteriores: As solas do sol (1998), Um terno de pássaros ao sul (2000), Terceira sede (2001) e Biografia de uma árvore (2002). Lendo esses poemas escolhidos, entende-se por que Carpinejar, aos trinta e quatro anos, é um dos poetas mais premiados do País. Há uma estranha mistura, em suas elaborações poéticas, de simplicidade, grandeza, profundidade e sempre uma certa aura do novo, uma criatividade rica, rara.

Em uma análise pela rama, percebe-se na pág. 23 a metáfora inusitada, com realce das sensações visuais. Uma característica da poesia de Carpinejar: densidade, imagens sucintas e bem cuidadas. Uma aparente simplicidade que raia ao cotidiano, ao coloquial: “Na claridade povoada, / acendi tua nudez. / Ágil, ovo sem clara”.

“Nasci vingativo, / negando / o que deveria perdoar. (...) tudo é necessário. / Sou a barca que fica / afiando as águas”. Nesse fragmento de poema há uma análise de sensações, uma tentativa de autoconhecimento. As abordagens líricas de um poeta são sempre a decodificação de sua mundividência, sua forma de ver o mundo, através de seus poemas. Eles são o raio x de sua alma, diante das estranhezas experimentadas. Só os ingênuos e insensíveis acham a vida e o universo simples, evidentes, explícitos. Quando nada se vê ou se percebe é sempre um mistério que escapa à nossa cegueira.

“Herdei tua solidão / e não posso humanizá-la. / Um segredo compreendido / é um segredo morto” (pág.38). Críticos abordam trechos poéticos com endereços certos, relacionando-os com problemas pessoais do autor. Pode ser verdade, porém sua grandeza é o ampliar das conotações. Este pequeno poema demonstra isto. Qualquer ser humano pode senti-lo de maneira pessoal. Seu conteúdo é universal e multívoco.

“Até quando serei o que compreendo?” (pág.71). O verso, sozinho, é um poema. Nele está a temática eterna de quem busca. “As confissões são inventadas. / Meus personagens foram maiores / do que o enredo”. Na segunda estrofe deste poema da pág. 73 enfoca-se o grande tema da Literatura, quer seja em prosa ou verso: ficção e realidade. Até onde o poeta é sua obra ou ele apenas recria o mundo, de acordo com sua cosmovisão. Na criação literária, quem são realmente as personagens? E o enredo, o que ele traz de verdade ou invenção?

“Deus, peço tua demissão por justa causa.

Não saberás se falo sério ou se estou rindo.

Vou indo. Na incerteza, o réu é sempre absolvido.

A chave deste belo poema metafísico (vide o refinamento da rima interna), pág. 74, o último da Antologia, pode ser, irônica e hereticamente, um posicionamento de liberdade. O poeta livra-se da fé, canga, mordaça, todavia, inteligentemente, em uma ambigüidade deliberada, realça a lei sábia do Código Maior: em caso de dúvida, pró réu.

Ely Vieitez Lisboa é escritora, crítica literária, professora e membro ba Academia Ribeirãopretana de Letras. E-mail: elyvieitez@uol.com.br