Tristezas
de Gelo
Rodolfo Konder
Durante anos, estive na “listra negra?do governo dos Estados Unidos. Fiquei sabendo disso em Lima, no começo de 1976, quando o cônsul norte-americano me recusou o visto: “não queremos comunistas em nosso país? Viajei para o Canad? mas nem pude sair do aeroporto, em Miami, escala no caminho para Montreal. Depois, com a eleição de Jimmy Carter, a situação mudou.
Amigos americanos frequentemente
me procuravam, em Montreal, convocando-me para simpósios sobre o Brasil, nos
Estados Unidos. Frank McCann, por exemplo,
convidou-me para um encontro na Universidade de New Hampshire;
Stuart Voss, para um painel em Plattsburgh;
Robert Levine, para uma palestra em Stony Brook. Joan Dassin e Ralph Della Cava, sempre presentes, levavam-me a diversas
manifestações contra as ditaduras latino-americanas, especialmente a
brasileira. Assim, não podia me sentir politicamente morto. Mesmo na tranqüila
Montreal, registrei-me como membro da “Ligue dês Droits
de L?span class=SpellE>Homme? e participava, com Paulo Carvalho, de
todas as iniciativas da Associação de Chilenos, presidida por Patrício
Henríquez.
Certamente foi este o motivo para o cônsul
brasileiro em Montreal, Aloísio Gomide, negar-se a renovar o meu passaporte.
Diplomata ressentido ?porque j?fora seqüestrado pelos Tupamaros,
quando servia em Montevidéu, anos antes ?ligado a organizações conservadoras,
tentou dificultar minha vida no Canad? Apesar dele, sobrevivi.
Mesmo com as mudanças promovidas pelo presidente
Carter, eu ainda enfrentava resistências, sempre que entrava em território
americano. Às vezes, precisava de ajuda de Kalman Silvert, da Ford Foundation, ou
de Elli Abel, reitor da Universidade de Columbia. Ou
ainda de Larry Birns, do
Conselho de Assuntos Hemisféricos. Conseguia entrar, mas passava por momentos
difíceis, na imigração.
A viagem at?Durham,
New Hampshire, foi um exemplo disso. Começou com uma
áspera discussão com os agentes da imigração, na fronteira. Viajava de carro,
por isso parei num posto de fiscalização. Obrigado a responder a inúmeras
perguntas, formuladas com clara hostilidade, irritei-me. Era sempre assim.
Devia dar todos os detalhes: onde ia, o que pretendia
fazer, com quem faria contato, endereços, tempo de?duração da viagem, data prevista para o
retorno ao Canad? Detalhes, muitos detalhes. Superadas as barreiras, segui por
aquelas estradas maravilhosas at?o campus de Durham
e participei, durante três horas, de um animadíssimo debate em que todos
manifestávamos nosso repúdio veemente às ditaduras militares que dominavam a
maioria das nações latino-americanas.
As viagens aos Estados Unidos, as idas freqüentes
a Nova York, os contactos com amigos americanos e a participação em encontros
internacionais me animavam e ajudavam a reduzir o sentimento de impotência?e solidão. As manifestações de solidariedade,
os gestos de apoio também contribuíam para que eu me sentisse menos isolado.
Mas nada daquilo mudava essencialmente a minha nova realidade.
De volta a Montreal, fechado na Sherbrooke West, eu via o inverno,
as árvores nuas, brancas como esculturas de gelo, as ruas e calçadas cobertas
pela neve que descia como baba do céu cinzento, às
vezes opaco, às vezes atravessado por uma luz difusa. Pensava nos amigos
distantes, nas pessoas amadas, nos lugares que são meus, nas pessoas que falam
a minha língua quando passam por mim, nas ruas e praças do meu caminho. Era um
tempo frio e solitário. Era um inverno que imobilizava países inteiros,
congelava o continente americano. Era o inverno da nossa tristeza, das nossas
angústias, da nossa desesperança. Eu olhava pelas janelas hermeticamente
fechadas e via somente um abismo gelado, sem gente e sem horizontes.