Ao reler, na 110ª e última edição do “O Escritor”, jornal da União
Brasileira de Escritores (UBE), já transformado em “Revista da UBE”, a transcrição do “Instâncias do Eu Ampliado”,
prefácio com que o escritor e crítico literário Erorci
Santana engrandeceu o meu livro “Versos
Casados”, pude, pela segunda vez na minha vida, me imaginar como um Franz Xaver Kappus, o jovem a quem Rainer Maria Rilke aconselhou: “Volte a atenção
para a infância, essa esplêndida e régia riqueza, esse tesouro de recordações”
(episódio este citado por Erorci Santana no referido
prefácio).
A
primeira vez que me vi acometido de situação emocional idêntica foi em 1954,
quando, após esforços de estudante pobre, consegui aprovação no vestibular da
Faculdade Nacional de Medicina, da Universidade do Brasil, hoje Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Foi nessa época que adquiri um pequeno livro de
poesias de Rainer Maria Rilke,
que, além dos difíceis (para o meu entendimento) poemas do grande vate, trazia comentários a respeito de uma troca de
correspondência entre o poeta e o jovem Franz Xaver,
que estava indeciso entre a carreira militar e a literária. A dramática dúvida de Franz Xaver marcou o meu espírito mais do que a obra de Rainer M. Rilker, uma vez que,
coincidentemente, vivia eu, naquele momento,
amargurado pela vontade de abandonar a medicina e voltar aos cursinhos
pré-vestibulares para me candidatar a um curso de física, ciência pela qual eu passara a me sentir
atraído, tardiamente, depois de já ter adentrado o campo das ciências médicas.
A mesma absurdidade da dúvida de Franz Xaver, a de
pendular entre duas atividades humanas tão díspares, podia ser transferida para
a minha tormentosa indecisão entre as ciências exatas e as biológicas. Mas,
como indecisão e
angústia são estados de espírito que geralmente nos provocam estupor, faltou-me coragem para aquela que ainda hoje
acho que teria sido a maior e mais sábia cartada da minha vida, embora
desconfiando de que se eu tivesse, naquele 1954, mudado o curso do meu viver,
talvez não tivesse acrescentado grandes coisas à física, e de que a medicina provavelmente
não teria também muito o que lamentar. De qualquer modo, ao relembrar, no
“Instâncias do Eu Ampliado”, o judicioso conselho de Rilke,
o escritor Erorci Santana me fez reencarnar o
personagem Xaver, no dramático palco da minha
vida.
Ora,
se esse simples episódio da minha mocidade tem se perpetuado, neste meu viver,
como crises de dolorosos arrependimentos e de auto-acusação, imaginem o que não
têm sido as freudianas estricções a que me vejo
submetido quando entro em regressões que chegam a me levar de volta não apenas
à mocidade e à infância mas também ao
meu humilde berço.
Não,
não farei deste texto um confessionário!
Nem
é preciso, pois até parece que o Erorci Santana,
apesar de ter me conhecido pessoalmente numa única ocasião, a do “Encontro de
Escritores”, em Dois Córregos-SP, em 2003, acabou
sendo meu confessor ou meu psicanalista. Parece e foi, mas não em virtude de
uma amizade de freqüentes contatos pessoais que pudessem fazer dele um
confidente ou um Freud, e, de mim, um penitente ou um cliente de divã. Foi,
isto sim, em função da sua capacidade de, pela leitura, dissecar a
personalidade e chegar à alma dos autores dos textos por ele avaliados. E eis
que a intelectualidade, a inteligência e a perspicácia psicanalítica,
principais virtudes do crítico Erorci Santana, chegam a me deixar com um certo receio de
ele poder vasculhar todo o meu passado e descobrir coisas que talvez estejam
sepultadas no meu inconsciente.
É
claro que esta minha sincera manifestação de “gratidão e medo” não tem apenas a
intenção de exaltar o poder de análise do grande crítico literário, que
certamente teve muitas horas de vôos sobre os meus “Versos Casados”, para poder
chegar ao seu belo “Instâncias do Eu Ampliado”, mas
também a de, realmente, externar a minha gratidão. Aquela gratidão que se me
implantou no coração quando o “Instâncias do Eu
Ampliado” abrilhantou, juntamente com o “Casamento Perfeito”, de Caio Porfírio
Carneiro, o meu livro, e que se renovou e se intensificou agora, quando,
emocionado, o vejo transcrito no “O Escritor”, um dos mais importantes jornais
culturais do país.
E,
na verdade, o mencionado receio, o medo,
não passa de indispensável figura de retórica para essa gratidão que, de
tão intensa, atinge a inefabilidade.
A.
Monteiro Filho é médico e escritor, autor de um romance, quatro livros de
crônicas, dois de contos e um de poesias.
Tel.: (19)3562- 4157.
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