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Jogo Maior

 

Odette Mutto

 

Na quinta-feira foi jogar catas, como de costume, com os parceiros de sempre. Fazia um mês que não jogava, o médico havia proibido, problemas circulatórios, coração. Manuel não se interessara muito, mas obedecera. Médicos às vezes tinham razão. Os outros três velhos fizeram festa ao vê-lo. Até brincaram que o lobo havia voltado para devorar os cordeiros, pois ele era ganhador constante. Manuel pôs os óculos, tirou o paletó, sentou-se no lugar habitual. Estava contente. O contacto com o baralho, toda a vida lhe fizera bem. Na frente dele, o antigo companheiro sorriu de leve. Manuel encarou-o. Parece que ele estava diferente, mais moço, com outra cara. Não ligou. Devia ser efeito da luz fluorescente nova.

Começaram o jogo. Manuel concentrado, olhos fixos nas cartas, seguindo, perseguindo as jogadas. Ganhou a primeira rodada, houve risos e comentários. Não se emocionou. Jogo era assim mesmo, uns ganhavam, outros perdiam. Estava ganhando agora, mas perderia em breve. Continuaram. Ao cabo de cinco partidas, perdeu. Não se preocupou. Continuaram. Ao cabo de cinco partidas, perdeu. Não se preocupou. Acostumado a jogatinas, sabia que perder fazia parte da brincadeira. Precisava prestar mais atenção; cometera um engano, o parceiro da frente aproveitara sua distração, vencendo-o. Tentou concentrar-se mais, não conseguiu. Estava ficando com sono. Estranhou. Mal tinham começado, não podia estar cansado. Passou a mão na testa, estava úmida de suor. Não gostou daquilo. Quase não transpirava. Não havia explicação para aquele suor, principalmente em uma noite fria.

Perdeu de novo para o mesmo companheiro. Nem viu a carta que deu vantagem ao outro. As vozes altas dos amigos devolveram-lhe a realidade. Segurou firme os três ases que recebeu. Pediu uma carta. O ás que faltava chegou. Quando mostrou o jogo, dois parceiros não quiseram prosseguir. Voltariam em meia hora, talvez a sorte tivesse mudado. Saíram. Ficaram Manuel e o que havia ganho. Então, distraidamente Manuel olhou para o outro. Desconheceu-o. Por muito que se esforçasse, não achou naquele homem o antigo camarada de tantos anos. Enfureceu-se consigo próprio.

Mas que confusão era aquela afinal?

De reprente o corpo ficou molhado de suor. Fixou bem o sujeito à sua frente. Sentiu-se ameaçado por um perigo vital, iminente e irremediável. Precisava gritar, chamar os dois que haviam saído, eles sim eram amigos, não este estranho de olhar sinistro. Mas não conseguiu fazer coisa alguma, nem se mover da cadeira, nem falar. Aterrorizado, viu o outro misturar o baralho, paciente e demoradamente. Agora não podia perder. Estava jogando mais que uma simples partida. Foi vencendo, o cérebro totalmente absorvido no jogo, rosto congestionado, respiração difícil. Cada nova jogada aumentava-lhe a opressão no peito, a dificuldade para respirar. Lutou quanto pôde. Até que o parceiro juntou quatro reis e ganhou, Manuel tinha uma dama, um cinco de ouro, um três de espada e um quatro de copas.

A última coisa que Manuel viu foi um ar de riso debochado no rosto enigmático do outro. Depois, tombou por cima das cartas, bem no momento em que os dois companheiros estavam voltando.

Confusos, os três velhos tentaram socorrê-lo, abrindo-lhe a camisa, atirando-lhe água na cara. Sem resultado; durou menos de meia hora. Transtornado, o que ficara jogando com ele não parava de repetir que tudo havia corrido bem até aquele instante; só que Manuel ficara olhando-o de um jeito gozado, como se não o reconhecesse. E quando a sorte virou e ele perdeu, caiu ali mesmo, sem dizer coisa nenhuma.

Odette Mutto é escritora, membro da União Brasileira de Escirtores.