As gaivotas gritavam, mas não podíamos vê-las, porque a neblina cobria as areias de Carrasco, uma praia da zona nobre de Montevidéu. Naquela hora de maré baixa, as águas doces do Rio da Prata – que chegavam de Buenos Aires e se preparavam para mergulhar no Atlântico Sul – acariciavam a cidade. Mais tarde, com a maré alta, elas seriam deslocadas pelas águas salgadas do oceano.
Ali, naquela esquina batida pelo vento,
conversei com o ex-deputado Demistóclides Batista, o Batistinha, um negro
valente e generoso que seria assassinado em Niterói, quase trinta anos depois,
com cinco tiros no peito. Estávamos ambos exilados, em razão do golpe militar
de abril daquele ano de 1964.
Andamos
pelas ruas arborizadas, até a Avenida 18 de Julio, passamos em frente ao prédio
“de la Municipalidad” (sede da prefeitura) e chegamos à Plaza de la
Independencia, sempre empurrados pelo Minuano. Naquele “país sem crianças”
(dizia o jornalista Paulo Ramos Derengóski), mas cheio de “jubilados”
(aposentados), buscávamos inutilmente atalhos para o futuro, que nos reservara
surpresas devastadoras. Nossos amigos uruguaios, por exemplo, viveriam em
seguida os tormentos de uma grave crise econômica e os pesadelos de uma
prolongada ditadura militar.
Dias depois, Batistinha me levou de carro
até uma pequena cidade do interior do Uruguai – Tucuarembó. A rua empoeirada
lembrava os velhos filmes de Gary Cooper, com umas poucas casas antigas de
madeira, que incluíam uma agência bancária, um hotel de segunda e uma livraria
quase imperceptível. Fui até o homem de testa ampla e cabelos lisos que se
escondia atrás da caixa registradora. “Quiero comprar el libro El Hambre, de Knut
Hanson”. Ele sorriu, levantou-se e me abraçou. A frase era
uma senha.
O livreiro Zili me abrigou, durante dois
dias, na casa de um pequeno fazendeiro. Eu dormia no celeiro, onde tomávamos
chimarrão e prevíamos a chegada do socialismo e a derrota dos militares. Então,
fui levado de automóvel até uma padaria, em Rivera, onde trabalhava um
jornalista de Porto Alegre, Edmur Ferreira, também foragido. Ficamos os três –
Edmur, eu e um dirigente estudantil gaúcho – num imenso depósito de objetos
velhos – móveis usados, manequins rasgados, placas de madeira. E ratos. Parecia
o cenário de A Morte Passou por perto, um dos primeiros filmes de
Stanley Kubrick.
Certa noite, recebi do estudante uma
passagem de trem até Porto Alegre. Atravessei Rivera, entrei em Santana do
Livramento e fui para a estação ferroviária. Cassiqui, Santa Maria, cheguei a
Porto Alegre bem cedo. No endereço indicado, toquei a campainha. Um homem
idoso, olhar cansado e bronquite crônica, abriu a porta da casa. “Vim aqui
negociar os couros de Santa Maria”, disse-lhe. Ele me abraçou comovido. A frase
era outra senha.
A etapa seguinte foi uma viagem de ônibus
até São Paulo, onde me receberam meus tios Sulamita e Antonio Comparato, num
casarão da Rua Arthur Prado, no Paraíso. Arthur Prado, 523. Logo o editor Ênio
Silveira me buscou, numa Kombi, e me levou de volta ao Rio de Janeiro, onde
vivi uma fase arrastada de novas agonias. Durante meses, os bares de Copacabana
e Ipanema foram novamente os pontos de encontro de amigos igualmente
desorientados, que percorriam comigo os labirintos da melancolia, da
causticidade, da tristeza e da desesperança. Bebíamos o chope preto do Bar
Alpino, enquanto três homens grisalhos tocavam no piano, no violino e no
contrabaixo músicas que ninguém ouvia. Desempregado – e sem profissão definida
– tornei-me jornalista e fui traduzir telegramas na Agencia Reuters. A política
deixara de ser uma aventura, para se transformar num drama. E não havia mais
heróis, na minha história – apenas seres amargurados.
Rodolfo Konder é escritor, jornalista, Diretor Cultural da UniFMU e conselheiro da União Brasileira de Escritores.