Havia o mar, uma imensa e insondável nação
submersa, povoada de peixes, mitos e lendas. Enormes arraias flutuavam na
ondas, junto às pedras do Arpoador. Golfinhos gentis e tubarões solitários
apareciam de vez em quando, entre cardumes de sardinhas e caravelas. As manhãs
eram azuis e as águas, transparentes, para o desespero dos peixes e a alegria
dos predadores. Uma tainha se distraía, nadava junto à superfície, brilhava ao
sol – e desaparecia no bico de uma ave. “A gaivota determinada mergulha na água
verde”, escreveu Paulo Mendes Campos. “Há um tempo para o peixe e um tempo para
o pássaro. E dentro e fora do Homem, um tempo eterno de solidão.”
Havia a praia, que se estendia do Arpoador
até a subida da Avenida Niemayer, aos pés do Morro dos Dois Irmãos. A areia
branca e fina escondia conchas, tatuís e vestígios de barcos naufragados que
nos desafiavam com os mistérios das profundezas e do destino. À tarde,
sentávamos nas dunas mais altas e olhávamos a maré, as nuvens e as ilhas do
Arquipélago das Cagarras, que nos vigiavam do alto mar, manchadas e
imperturbáveis. O sol descia então lentamente, diante do nosso deslumbrado
silêncio. O céu parecia um quadro tachista. A noite chegava à praia no ruído
discreto das marolas, trazendo para a areia os tristes vestígios cansados do
dia.
Havia o bairro, que na verdade começava no
Arpoador, crescia, internamente, a partir da Praça General Osório, avançava
pela Visconde de Pirajá, chegava até a Lagoa Rodrigo de Freitas e terminava no
Bar Vinte, logo depois do Cine Astória, onde o bonde e o vento faziam a curva.
Algumas ruas ainda eram de terra. A Nascimento Silva era asfaltada, mas só a
partir da Farme de Amoedo. Morei ali, na casa de número 87. Na esquina de Barão
da Torre e Farme de Amoedo, “seu” Afrânio tinha um açougue. Do outro lado da
rua, ficava a padaria do “seu” Manoel, pai do Paulo “Gordo”. Um quarteirão
adiante, na Monte Negro, um botequim onde comíamos queijo e goiabada – “Romeu e
Julieta”. Logo em seguida, a escola de capoeira do Sinhozinho e a Praça da Paz,
em frente à igreja.
Havia a gente do bairro. Primeiro, os
meninos sem sobrenome que moravam em cortiços e brigavam de gilete na mão.
Joaquim, o Quim, tinha um quisto supurado na bochecha esquerda, por onde
expelia a fumaça do cigarro, se lhe dessem 500 réis. Depois, chegaram os amigos
de classe média – Renato Cláudio Alves Ribeiro, Paulo Saboya, Carlos Roberto
Estrella, Heitor Simões de Oliveira. Passávamos os fins de semana na praia e
jogávamos sinuca no Bar do Zé, no Posto 6, em Copacabana. Vieram também as meninas,
as namoradas, as primeiras paixões – Aida, Lucy, Wilma. Bebíamos todos no
Veloso, no Lagoa e no Jangadeiros. Freqüentávamos os cinemas Ipanema, Pirajá e
Astória.
Renato Cláudio era o mais corajoso do
grupo. Na noite em que o Saboya mexeu com a mulher de um halterofilista, ele
foi o único a enfrentar os amigos do ofendido, que voltaram em sua companhia
até o Bar Gardênia, onde Renato e Saboya bebiam cerveja com Satamini e João de
Deus. Saboya fugiu de taxi, Satamini se escondeu na cozinha do restaurante e
João de Deus correu para o Cine Ipanema, em frente à Praça General Osório.
Renato, ao contrário, avançou sobre os inimigos – e apanhou a noite inteira.
Estrella era ousado. Certa manhã, nadou
quilômetros, com Carlos Magalhães, numa prancha, até as Ilhas Cagarras. Na
volta à Praia de Ipanema, tiveram de se orientar pelas luzes, porque a noite
caiu sobre eles ainda em pleno mar. Quase morreram. Meses depois, Magalhães
tentou repetir a façanha, com o irmão do Saboya, João Carlos. Ambos
desapareceram no mar.
Hoje com cento e dez anos, Ipanema possui
memórias miúdas e fantasmas ilustres, como Paulo Mendes Campos, Rubem Braga,
Vinícius de Morais, Tom Jobim. Leandro Konder mudou-se para o Leblon. Milton
Temer também já não mora mais ali. Mas a arborizada Ipanema ainda desafia o
tempo, deslumbrantemente nua e discretamente orgulhosa, como era nos anos 40,
quando a descobrimos e nos apaixonamos por ela.
Rodolfo konder é escritor, jornalista,
Diretor Cultural da UniFMU e conselheiro da União Brasileira de Escritores.