Sombras do cotidiano
Rodolfo konder
O homem
sentado no chão, os braços sobre os joelhos, olha fixamente para a frente, de
modo obstinado e até ríspido – a peça de madeira escura é africana, foi
esculpida na Costa do Marfim. Ao lado, a cabeça coroada do rei de Benin, também
em madeira escura, veio para o Brasil pelas mãos de meu pai, médico sanitarista
que trabalhou durante um ano no interior da África Negra, na esteira da 2ª
Guerra Mundial. No topo da estante, à frente dos filmes em vídeo, com suas
capas coloridas, Ogum, o santo guerreiro, domina a sala de TV com o seu olhar
severo, alguns palmos acima do festivo cavalo de Bali, lembrança gentil de
Elton Cardoso. A televisão que há anos me acompanha, o infalível vídeo de
muitas cabeças, as gravuras maias trazidas da Guatemala, o pequeno dragão
inglês de metal, as gárgulas indianas que agora repousam nas altas prateleiras do corredor, todos
esses objetos que agora acaricio com os olhos me fazem sentir inconscientemente
feliz – uma felicidade quase imperceptível, que às vezes nos oferecem as velhas
coisas amadas.
Amanhã, as esculturas, as
gravuras, os filmes, os livros, o sofá, a mesa de vidro, as estantes de
madeira, a televisão, o vídeo e todos os objetos familiares que hoje me cercam
e enternecem deslizarão, como eu, pelos declives da noite, esquecidos e
desmaterializados. Cada um, no seu devido momento, passará para o lado de lá do
tempo, encerrando uma história que, em alguns casos, veio de muito longe.
Exemplo: o homem sentado, de cabeça grande e olhar obstinado, nasceu anos atrás
numa aldeia praticamente abandonada, às margens de um lago escuro, povoado de
crocodilos famintos, das mãos ansiosas de uma mulher infeliz e solitária, mas
ainda capaz de sonhar com homens e de reproduzir suas formas na ponta nervosa
de uma faca. Exportado para Pretória, África do Sul, junto com outras peças
esculpidas na Costa do Marfim, ele me desafiou durante dias com seu olhar
obstinado, de cima de uma armação de metal, até que resolvi trazê-lo para o
lado de cá do mar. Talvez se vá, um dia, para o interior do Estado, fadado a
desaparecer, tornado cinzas, num incendiário conflito de terras em Rio Claro.
Já o desmembrado cavalo de Bali poderá submergir nas
corredeiras de um rio tão enfurecido quanto a mão que o lançará no abismo. A
história da maioria desses objetos apenas correu paralelamente à minha própria
história, estiveram interligadas, mas não previam um destino comum. Quando eu
me embrenhar nas florestas impenetráveis do esquecimento, eles nem se darão conta
da minha ausência, serão certamente acariciados por outros olhos, inabaláveis
na sua função de encantar. Não é o caso de certas presenças menores, quase
inapreensíveis, que também me acompanham.
Sempre que morre alguém, ficam os escombros. No plano das relações
humanas, ficam o sofrimento arrastado, as manchas de nostalgia, a saudade
corrosiva, as imagens inconstantes nos espelhos estilhaçados da memória. Sobram
igualmente as propriedades, o carro usado, as roupas, os livros, algumas obras
de arte. Ações, talvez. Além disso, porém, há presenças que naufragam conosco,
objetos que se desnorteiam, perdem a função sem o nosso comando. A chave
perdida no fundo de uma gaveta jamais encontrará novamente a fechadura que a
acolhia. Um bilhete ficará abandonado para sempre entre as páginas de um livro.
O velho pente de avião, desbotado e sem dois dentes, nunca mais alisará os
cabelos de alguém. Nem terá qualquer utilidade o canivete enferrujado que agora
se esconde no armário do banheiro. Você afundou, esses pequenos objetos inúteis
do cotidiano ficarão boiando, à deriva, como discretos destroços. Um chapéu
encardido, duas bengalas, livros que ninguém reabrirá, um chaveiro sem graça, o
baralho de desenho oriental, um ingresso usado, uma medalha injusta – são
partes do naufrágio.
Abro o jornal e leio que a
médica Isaura Pinevski foi assassinada com um tiro no peito, no Campo Belo. O
jornal registra ainda as mortes de Alcides Angeloni, Emília Basso Liberato,
Genaro Espósito, Maria Milani, entre diversos nomes. Imagino o sofrimento dos
seus parentes, a saudade que deixarão entre os amigos, as lembranças difíceis,
os legados, as heranças, as questões judiciais, os reverentes comentários dos
vizinhos. Depois, tento imaginar como seriam as velhas coisas amadas que
tornavam aquelas pessoas felizes, ainda que por fugazes instantes – a cadeira
especial, o anel que chegou com o amor, um livro várias vezes lido, a
escrivaninha, o gato, a caneca, o sapato que parecia um chinelo. Penso nos
escombros que ficarão de cada naufrágio, nos destroços à deriva, em tudo que
permanece e também no que mergulha conosco, neste misterioso relacionamento com
as pessoas e com os objetos do nosso cotidiano.
Rodolfo konder é escritor, jornalista,
Diretor Cultural da UniFMU e conselheiro da União Brasileira de Escritores.