Quarenta anos atrás, no dia 1º de abril de 1964, acordei
sobressaltado. Na televisão, a voz arrogante de Flávio Cavalcante anunciava a
vitória dos golpistas e a fuga, de Brasília, do Presidente João Goulart. Na tela,
surgiam imagens de lençóis brancos nas janelas de alguns prédios da zona sul do
Rio de Janeiro. Comemoravam o fim do governo Jango e o inicio de uma prolongada
ditadura militar.
As
perseguições que se iniciaram a partir de então não perturbaram a rotina das
ruas – pelo menos até 67 a 68 – mas eram reais. Arrastaram muita gente, na
penumbra. Levaram parentes e amigos. Seqüestravam as pessoas e, às vezes,
faziam-nas imergir no lodaçal insondável do “desaparecimento”.
À
noite, casas e mentes eram invadidas, enquanto os cães uivavam nos quintais e o
vento investia contra as sombras. A casa dos meus pais foi ocupada. Prenderam
minha mãe – doce e inofensiva mulher de 50 anos – meu irmão e minha cunhada.
Transformaram a casa numa espécie de papel pega-mosca: quem tocava a campainha,
caia na armadilha.
Dirigente sindical na Petrobrás, fui logo procurando pelos agentes da
repressão. E cassado. Com a ajuda de Luís Carlos, funcionário da empresa que eu
jamais vira antes, mas que me levou até a embaixada do México, na Praia do
Flamengo, escapei e parti para o primeiro exílio. Antes de embarcar, vivi uma
experiência claustrofóbica, num apartamento ocupado
por mais de 60 pessoas que se odiavam e pareciam ratos de laboratório.
No
México de Lopes Mateus, conheci o lendário Lázaro Cardenas,
visitei Acapulco, estive em La Quebrada, para ver mergulhadores que pareciam pássaros, e sobrevivi a um
terremoto. Depois, desci pela Costa do Pacífico, com Osmildo
Stafford e Humberto Pinheiro, até o Chile. Então,
Argentina e Uruguai.
Vivi
quase clandestinamente, após regressar do primeiro exílio, pela fronteira com o
Uruguai, em Rivera e Santana do Livramento. Consegui
meu primeiro emprego na Agência Reuter, com a ajuda
de Luís Gazzaneo, em 1965. Na cobertura da
Conferência da OEA, no Hotel Glória, Aristélio
Andrade, Milton Coelho, Maurício Azevedo e eu criamos uma comissão de
jornalistas que preparou um texto com denuncias contra o regime militar. Com a
ajuda de Lygia Sigaud e dos membros da comissão, o
texto foi distribuído dentro do hotel, para o desespero da polícia política.
Na
esteira do AI-5, no final de 1968, mudei-me para São Paulo, onde fui preso, em
1975. As torturas a que me submeteram, nos porões do DOI-CODI, deixaram
seqüelas que até hoje não consigo avaliar com precisão. Mas creio que o seu
efeito mais perverso é uma sensação insuperável de isolamento, um sentimento de
solidão que se instalou para sempre.
No
dia 1º de abril de 1976, doze anos depois do golpe militar, a Segunda Auditoria
de Guerra, em São Paulo, decretou minha prisão preventiva. Autorizado a me
defender em liberdade, deixei de comparecer semanalmente ao gabinete do
delegado Sérgio Fleury – e me encontrava “em lugar ignorado e não sabido” (SIC).
Na verdade, eu fugira para a Argentina, atravessando clandestinamente a
fronteira, em Foz do Iguaçu. Ao receber cartas e telefonemas de uma organização
que se dizia “O Braço Armado da Repressão”, decidi sair do país para um segundo
exílio.
Da
Argentina, fui para o Peru. Mas acabei em Montreal, no Canadá, onde trabalhei
durante dois anos como “announcer producer”, na “Canadiam
Broadcasting Corporation”. Participei de encontros
internacionais, entrei para a Liga dos Direitos Humanos, esquiei nas Lawrentian Mountains. Depois,
morei quase um ano em Nova York, como correspondente do jornal Versus,
dirigido por Marcos Faerman.
Após
meu regresso ao Brasil, em outubro de 1978, fui intimado a prestar depoimento
na Polícia Federal. Durante três horas, fizeram-me perguntas, na presença do
meu advogado, José Roberto Leal, e do vice-presidente do Sindicato dos
Jornalistas, Fernando Moraes. Mas o clima era de respeito. A abertura política
se esboçava.
Hoje,
posso dizer que estive na guerra. Estivemos todos, na verdade. Não combatemos
na Coréia, nem no Vietnã, nem no Chade, nem na
Croácia, mas estivemos na guerra. Na Guerra Fria. Durante vinte anos,
enfrentamos o regime militar implantado no Brasil em 1964 – quarenta anos
atrás. Não podemos esquecer, até porque os demônios do autoritarismo e da
intolerância ainda nos espreitam, na sombra.
Rodolfo Konder é escritor, jornalista
e conselheiro da União Brasileira de Escritores.