A sofisticação e a delicadeza vieram da avó, Francês Haslam, inglesa de Staffordshire, que, aos 90 anos, pediu desculpas aos filhos por morrer tão devagar. A discrição e o amor aos livros foram herança do pai, Jorge Borges, homem tão modesto que gostaria de ser invisível. A atração pelos destinos épicos chegou com as histórias do avô,o coronel Isidoro Suarez, herói da batalha de Junin. Da mãe, Leonor Acevedo, herdou a capacidade de ver o lado melhor das pessoas e de valorizar o sentimento da amizade.
Durante anos, Leonor
protegeu o filho único e cego – Jorge Francisco Izidoro
Luis Borges. Lia para ele, escrevia para ele, vivia para ele. Acompanhou-o em
diversas viagens como amiga incondicional. “Foi ela”, disse Borges, “quem
estimulou, de forma silenciosa e eficaz, minha carreira literária.” Um episódio
revela o clima de carinho que cercava as relações entre mãe e filho. Borges
costumava ditar seus poemas para que a mãe os registrasse. Certo dia, Leonor
leu o Poema de los Dones
já impresso. “Era triste e falava dos seus olhos”, escreveu a mãe mais
tarde. “Como fizeste?”, perguntou e ele respondeu: ‘Ditei a alguém na
biblioteca, porque pensei que te deixaria triste’.
Apesar dos problemas
com a vista, o frágil menino Borges lia muito, em inglês e espanhol. Começou a
escrever “aos 6 ou 7 anos”; aos 15, viajou com a família para a Europa. Verona,
Veneza, Genebra, Zurique, Lisboa, Madri, Palma de Maiorca,
Valldemosa, Córdoba, Sevilha. Aprendeu alemão,
estudou, conheceu escritores e intelectuais – e logo era um cidadão do mundo.
Mas o seu lar nunca deixou de ser Buenos Aires, “uma cidade quase interminável,
com edifícios baixos e tetos planos que se estendiam até o ocidente, até os
pampas”.
No cenário
redescoberto de Buenos Aires, ao som de antigas milongas,
explodiu como escritor: “Sinto-me argentino e não poderia viver fora de Buenos
Aires. Estou acostumado à minha voz, ao meu corpo, a ser Borges, e uma parte
destes costumes é Bueno Aires”. A sua estética? “Não possuo
uma estética. O tempo me ensinou algumas astúcias: evitar os sinônimos, que têm
a desvantagem de sugerir diferenças imaginárias; evitar hispanismo, argentinismos, arcaísmos e neologismos; preferir as
palavras habituais às palavras extravagantes; intercalar num relato traços
circunstanciais, exigidos agora pelo leitor; simular pequenas incertezas, já
que a realidade é precisa e a memória não o é; narrar os fatos como se não os
entendesse totalmente; recordar que as normas anteriores não são obrigações e
que o tempo se encarregará de aboli-las.
De 1923, quando
publicou Fervor de Buenos Aires, até 1985, ano em que se fixou em
Genebra, Borges escreveu poemas, contos, ensaios, deu aulas, fez palestras e
declarações polêmicas. Nos labirintos e espelhos, travou sua grande batalha em
busca da própria identidade. No poema Elogio da Sombra, conclui: “Chego
ao meu centro, à minha álgebra e minha chave, ao meu espelho. Breve saberei
quem sou.”
Move-se como uma peça
no tabuleiro do destino,consciente de que também os jogadores são prisioneiros
dos ardis de Deus. E se inquieta: “Que deus atrás de Deus o começa, de pó e
tempo e sonho e agonia?” Aqueles ardis o empurram na direção de Maria Kodama, sua paixão tardia e derradeira. “Agora estou
empenhado na paz, em desfrutar o pensamento e a amizade, e, apesar de que isso
possa parecer muito ambicioso, em amar e ser amado.” O amor de vários anos os
leva ao casamento, em 1985, em Genebra.
No dia 14 de junho do
ano seguinte, Borges morre. “Borges murió”,
dizia a manchete do jornal que li, emocionado, no mesmo dia, no aeroporto de Ezeiza, perto de Buenos Aires. Naquele momento,pensei,
aterrorizado: é a morte da imaginação.
“Todos os homens
sentem que não existem, quando uma mulher os deixa. Sentem que são simplesmente
a ausência daquela pessoa querida, indispensável e perdida”, disse Borges. Há
precisamente 20 anos, todos nós, escritores, artistas, pessoas ligadas à
cultura, somos simplesmente a ausência de Borges.
Rodolfo Konder é jornalista,
escritor, diretor cultural da FMU e conselheiro da União Brasileira de
Escritores.