Até nem sei como foi. Mineiramente, por certo. Conversamos, trocamos informações, muitos e-mails, vieram histórias, textos enviados e recebidos, silêncios, reflexões, livros...
Como começou, não sei. Nem quando nem quem.
Parece que desde sempre, como quem sempre se conheceu e viveu junto. Quando dei
acordo de mim, éramos velhos amigos. Sem nunca nos termos visto. Ele me
conhecia e eu o conhecia. Demais.
Quase. Surpreendeu-me. Nossa conversa era sempre
amena, leve como água saltitando em cascalho. E veio um turbilhão, um
torvelinho, um sumidouro que eu não esperava. Assustei-me.
O Manoel Hygino dos
Santos pegou-me no contrapé. Mineiramente, por certo. Sempre calmo, tranqüilo,
com aquela prosa fina e bonachona, eu não esperava a angústia e o
questionamento de seu novo livro, que acabo de ler: “Tu És Pedro Nava – Um Crime Que Ficou Sem Castigo” (ed. O Lutador,
2004).
Cenas e notícias de suicídio têm sido freqüentes
em minha vida. Desde a meninice, quando aluno do curso primário local, até há poucos dias, quando um jovem aqui da vizinhança deu cabo
de si, o fato é mais comum do que parece. E deixa-me sem entendimento. A cada
vez, a pergunta: por quê?
Três foram os suicídios que mais me chocaram:
Getúlio, Hemingway, Nava.
Quando Getúlio Vargas se matou, eu era seminarista, estudava em Cerro Largo,
RS. A notícia foi dada em interrupção de aula, por um padre, e minha reação foi
no ato:
- Meu Deus! Ele foi pro inferno: suicídio é
pecado!
O suicídio de Ernest Hemingway
encontrou-me em Porto Alegre, já acadêmico de Direito na UFRGS. Eu
enfronhava-me de ares metropolitanos, era calouro, e tomava conhecimento de
Fidel Castro, Cuba, Finca Vigía, Hemingway.
Eram ícones! Ícones não se matam, endeusam-se. E Hemingway
matara-se. Impossível acreditar!
Em maio de 1984 eu já era um cara bem acomodado
por estas minhas bandas missioneiras. Estabelecido, família feita, ganhava o
meu sustento como Deus provia mas não deixava de ler, rabiscar, ler... Entre muitos,
eu lia Pedro Nava, a começar por “Baú de Ossos”.
Celebrado de norte a sul, decantado, Pedro Nava
enchia-me os olhos por sua vastidão de conhecimentos. Impressionava-me de
verdade. Ainda, eu admirava seu ceticismo e desesperança, que me pareciam qualidades
de alguém superior ao prosaico do mundo. E o barroquismo
de sua escrita confirmava a superioridade, pensava eu. Como podia matar-se,
pois?!
Matara-se. Com um tiro na cabeça, em banco de
praça, no Rio de Janeiro. Por quê?
Em “Tu És Pedro Nava –
Um Crime Que Ficou Sem Castigo”, Manoel Hygino dos
Santos propõe-se a questão e procura uma
resposta. Com seu estilo de homem de jornal, Manoel Hygino
segue pistas diversas, coleta informações, ausculta opiniões, aventa hipóteses,
mas avisa: O objetivo proposto para o presente estudo continua sem resposta
clara e definitiva, se fora esta possível (p. 95). Por diversas vezes, o
autor alerta sobre um estranho telefonema recebido pelo suicida poucos momentos
antes do desenlace: Ninguém sabe de quem (p.32). Do telefonema, recebido
em casa, o suicida parte para a morte, em praça
pública.
Indução ao suicídio? Então houve crime. E este é
mais um mistério a acrescentar... (p. 136).
Todo suicídio é um mistério. Manoel Hygino dos Santos discorre sobre o assunto, questiona e
esclarece. Expõe o pensamento de especialistas e deixa claro que é até fácil
discutirmos ou avaliarmos o suicídio de uma maneira geral (abstrata)... Mas é
altamente difícil, ou impossível, descrevermos as “razões” do suicídio de João
ou de Maria... (p. 96). E cita Albert Camus, com o seu “O Mito de Sísifo”, mostrando a complexidade, e a importância, da
questão: Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio.
Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é uma questão fundamental da filosofia...
(pp. 96-7).
A minha primeira reflexão séria sobre o suicídio
veio-me pela leitura de “Os Demônios”, de
Dostoievski. Fiquei completamente zonzo com os argumentos do personagem Kiríllov em prol do suicídio, autoproclamando-se
dono de sua vontade e, por conseqüência, sendo ele a própria divindade e
podendo dispor, assim, de sua vida como bem entendesse. Já a maldade e a
solidão do outro personagem, Stavróguin, era-me bem
mais propício ao suicídio. De qualquer forma, fui sacudido até o último
resquício de mim mesmo.
A reflexão seguiu, continua. Tem-se, de forma
genérica, como explicação para o suicídio: a) Causas psiquiátricas, como
depressão, alcoolismo; b) Causas sociológicas: solidão, inadaptação;
c) Causas psicológicas: tendência à autodestruição e outros. Isso Manoel Hygino dos Santos nos clareia em seu livro (p. 99) e é o
que eu tenho encontrado, com variantes de pouca monta, em minhas leituras.
São explicações, só. A questão-chave permanece, a
assertiva de Camus continua acesa. Procurei, li, estudei, mas não achei
solução. Só o próprio suicida, talvez, possa dizer o porquê do seu ato. Ou,
quem sabe?, nem ele próprio.
Eu tento compreender. Não consigo, mas tento.
Desconfio que no fundo, no fundo, bem lá no interior da alma do suicida, deve
existir um grande, um enorme vazio, uma desolação sem fim. Algo assim, mais ou
menos assim como nos diz o poeta Sânzio de Azevedo:
Êxito ou fracasso
por que despedida?
Nada diz mais nada
Ao suicida.
Nelson Hoffman é autor de Eu Vivo Só Ternuras . E-mail: n.hoffmann@via-rs.net