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“..... os sonhos constituem o mais antigo e
o não
menos complexo dos gêneros
literários.”
(Livro dos Sonhos, Prólogo.
Jorge Luis Borges)
“ Ao fazer do sonho não somente o primeiro objeto
de investigação, mas um modelo (...)
de todas as expressões dissimuladas, substituídas
e fictícias do desejo humano,
Freud convida a procurar no próprio sonho a
articulação do desejo com a linguagem.”
(Da Interpretação – Ensaios
sobre Freud Paul Ricoeur).
Do
Poder da Palavra: ensaios de literatura e psicanálise, de Adélia Bezerra de Meneses, acaba de ser
reeditado pela Editora Duas Cidades (São Paulo, 2004, 224 p.). O livro fora
originalmente editado em 1995, também pela Duas Cidades. Além de reafirmar as qualidades didáticas da
autora – professora de Teoria Literária da UNICAMP e da USP – a obra trafega
por uma especial confluência e se insere numa ótica interdisciplinar,
instaurando novas abordagens de pensamento crítico e propondo novas instâncias
de reflexão acerca do fenômeno literário.
Tomando
conceitos e instrumentos de psicologia e de psicanálise, elementos das teorias
freudiana e junguiana, a autora examina textos literários das mais diversas épocas,
gêneros e estilos, e prima ao eleger seus objetos de estudo: a poesia de João
Cabral de Melo Neto, alguns textos da Poética de Aristóteles, alguns cantos da
Odisséia, de Homero, obras de Graciliano Ramos
e de José de Alencar,
além de letras
de canções de
Chico Buarque de Holanda, o filme Blade Runner, de
Ridley Scott, e um relato psicanalítico escrito por Freud.
Adélia
Bezerra de Meneses guarda em seu docere um afinado instrumento de
pesquisa e investigação. Conjugando rigor técnico-científico e clareza na
formulação de idéias e conclusões, também alcança elevado nível estético,
construindo um verdadeiro canto paralelo, marcado por harmonia e pela leveza,
entendida esta como uma das qualidades centrais destacadas por Ítalo Calvino em
Seis propostas para o próximo milênio.”
Ao
abrir o conjunto de onze ensaios, Meneses vislumbra as aproximações entre a
literatura e a psicanálise, anotando que estas ocorrem em várias esferas,
desde “a utilização da palavra como
matéria-prima”, até o grau de relevância assumido pelo inconsciente, que,
segundo o entendimento lacaniano, estruturando-se pela linguagem, emerge por
meio de sonhos, mitos, lendas, lapsos, epopéias, romances, poemas.
Em Scherazade
ou Do Poder da Palavra, a ensaísta identifica um novo tipo de poder
instaurado pela mulher: a força da palavra, que, como magia, mostra-se capaz de
transformar o curso dos acontecimentos. E lembra Freud, que, em estudo acerca
da feminilidade, escreveu: “quem quiser saber mais sobre a mulher, que
consulte ............os poetas.”
O
livro também investiga as “metáforas
de intimidade material” do poeta João Cabral de Melo Neto, identificando e
sublinhando suas várias vertentes imagéticas e reconhecendo na obra
paralelismo, a dialética e a complementariedade presentes nos processos de
extroversão e introversão. A imaginação poética deseja explorar a matéria, uma
palavra penetra a concretude do mundo, e, ao invadir sua densidade, irá
desvendá-lo.
Também
merecem destaque as belíssimas reflexões sobre memória e ficção constantes do
ensaio cujo sub-título – matéria de mimese – já insinua a natureza da análise
que nele se contém: explícito confronto de espelhos, vozes e enredos, com
ênfase no aspecto onírico: a condensação do sono, vista como semente e fruto da
narrativa.
Digno
de registro, ainda, o estudo de Angústia, de Graciliano Ramos. Segundo a
autora, o protagonista do romance vivencia a angústia ôntica, a angústia moral,
estado em que se faz presente a angústia patológica determinante do desvio de
conduta retratado na obra.
Neste
precioso conjunto de ensaios, Adélia Bezerra de Meneses convida e incita o
leitor a uma reflexão mais ampla sobre a obra literária, que, como toda
manifestação artística, desdobra-se em tecido plurissignificante, erigido por
múltiplos mistérios e passível de infinitas possibilidades interpretativas. A
leitura da obra nos conduz à sábia reflexão de Octavio Paz “la expressão
estética es irreductible a la palabra no obstante solo la palabra la
expressa”.
Beatriz Helena Ramos Amaral, poeta e Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP, é autora de Planagem e Alquimia dos Círculos, entre outros.