AS TORTURAS LENTAS DA EXPRESSÃO
(em comemoração ao 1º centenário de nascimento do poeta
brasileiro Mário Quintana, 1906-2006)
Aricy Curvello
Nenhum outro poeta do Rio Grande
do Sul conseguiu na vastidão do Brasil ser tão estimado, tão amado sim em todas
as regiões, quanto o introvertido Mário Quintana, cujo primeiro centenário de
nascimento transcorreu em dia 30 de julho p. passado.
O melhor a fazer para homenagear
um escritor, principalmente em se tratando de um verdadeiro poeta, é
reeditar-lhe a obra, e não criar um prêmio com seu nome ou erigir uma estátua sua em praça pública.
Felizmente, reeditar toda a obra de Quintana é o que está fazendo com desvelo a
Editora Globo.
Como a maioria dos estudantes,
entre 1960 e 1969 vivi em Belo Horizonte com orçamento curto (curtíssimo é a
expressão mais correta). Não poderia adquirir em livrarias. Comprei em um sebo
uma edição bastante usada, quase se desfazendo, de “A rua dos cataventos”, o
primeiro livro de nosso poeta, lançado pela mesma Globo em 1940. Em um dos sonetos, o autor confessa que, ao
escrever, “vão começar as convulsões e arrancos” (...) na tentativa de
conseguir captar, sem repetir os outros, a vida que é sempre inédita. Ele me
conquistou como leitor para sempre, com sua honestidade, com sua natural
singeleza, com a absoluta ausência de
vaidade e pretensão.
O que ele nos transmite no Soneto
XXXV:
“Quero é ficar com alguns poemas
tortos
Que andei tentanto endireitar em
vão...
Que lindo a eternidade, amigos
mortos,
Para as torturas lentas da Expressão!”
Tenho à minha frente, hoje, a
esmerada edição de “A rua dos cataventos” que comemora o centenário de Quintana
(S.Paulo: Globo, 2005). Em papel pólen print 120-G, por certo durará pelos
próximos séculos, ao contrário daquela que me coube quando estudante em Belo
Horizonte. Como deve ser, abre a Coleção Mário Quintana, com organização, plano
de edição, fixação de texto, cronologia e bibliografia aos cuidados da
competência de Tânia Franco Carvalhal. Toda a obra de Quintana está sendo
otimamente reeditada, incluindo “80 anos de poesia”.
Seria, no entanto, trair o poeta
ficarmos tão somente nas aparências e no que é comemoração, ignorando o que ele
sempre teve e tem a nos dizer:
“Se alguém acha que estás escrevendo muito
bem, desconfia ... O crime perfeito não deixa vestígios.” a
a revis84
Nasci em Alegrete, em 30 de julho de 1906. Creio que foi a
principal coisa que me aconteceu. E agora pedem-me que fale sobre mim mesmo.
Bem! eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente.
Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma
vírgula que não fosse uma confissão. Ah! mas o que querem são detalhes,
cruezas, fofocas... Aí vai! Estou com 78 anos, mas sem idade. Idades só há
duas: ou se está vivo ou morto. Neste último caso é idade demais, pois foi-nos
prometida a Eternidade.
Nasci no rigor do inverno, temperatura: 1grau; e ainda por
cima prematuramente, o que me deixava meio complexado, pois achava que não
astava pronto. Até que um dia descobri que alguém tão completo como Winston
Churchill nascera prematuro - o mesmo tendo acontecido a sir Isaac Newton!
Excusez du peu... Prefiro citar a opinião dos outros sobre mim. Dizem que sou
modesto. Pelo contrário, sou tão orgulhoso que acho que nunca escrevi algo à
minha altura. Porque poesia é
insatisfação, um anseio de auto-superação. Um poeta satisfeito não satisfaz.
Dizem que sou tímido. Nada disso! sou é caladão, introspectivo. Não sei porque
sujeitam os introvertidos a tratamentos. Só por não poderem ser chatos como os
outros? Exatamente por execrar a chatice, a longuidão, é que eu adoro a
síntese. Outro elemento da poesia é a busca da forma (não da fôrma), a dosagem
das palavras. Talvez concorra para esse meu cuidado o fato de ter sido prático
de farmácia durante cinco anos. Note-se que é o mesmo caso de Carlos Drummond
de Andrade, de Alberto de Oliveira, de Érico Veríssimo - que bem sabem (ou
souberam) o que é a luta amorosa com as palavras.
Em entrevista a Lau Siqueira
“- Olha, eu sou um eterno aprendiz.
Porque o poeta que descobre uma fórmula, ganha renome, não quer outra vida, e
fica conversando com os amigos sentado em cima do muro sem se espetar, esse
está perdido, porque eu acho que a poesia não é mais que a procura da poesia,
como acho que também Deus se resume na procura de Deus. Eu publiquei meu
primeiro livro aos 34 anos. Foi “A Rua dos Cataventos”.
Aí está o que disse a Lau Siqueira em Porto Alegre, em janeiro de 1987. A entrevista
foi publicada pelo Jornal O Norte, de João Pessoa/PB, no dia 25 de janeiro
daquele ano. Palavras que dispensam comentários.
O poeta das coisas simples e do mundo
adverso
O poeta Mário Quintana não se preocupou com os
falsos ouropéis da fama. Jamais aborreceu alguém para que escrevesse e elogiasse
qualquer de seus livros. Fez poesia porque sentiu invencível
necessidade, conforme suas palavras. Jamais cometeu a vilania de correr
atrás de júris e de meros premiozinhos literários que em nossos dias os
poetastros laureados em Xapetuba alardeiam em trombone como se fossem prêmios
nacionais ou internacionais. E o que dizer das singelas menções honrosas que os
desonestos tentam fazer passar por premiação? Para tanto, quem melhor haverá de auxiliar-nos será outro poeta,
também digno, José Paulo Paes, no “Prefácio” que escreveu para seu próprio
livro de ensaios curtos, “A Aventura Literária” (S.Paulo: Companhia. das
Letras, 1990, 1a.
ed., p. 8): “A explicação é simples: leitor apaixonado de prosa
de ficção, sou no entanto incapaz de
escrevê-la. As poucas tentativas que fiz nesse sentido deram infelizmente em
nada. Uma delas recebeu até menção honrosa num concurso nacional de contos, o
que equivaleu à pá de cal definitiva: não há nada mais desonroso que uma
menção honrosa”.
Da mesma forma, Quintana jamais apregoou suas
próprias excelências nem as fez dizer por terceiros. É congênita nos
verdadeiros poetas a honestidade para consigo mesmo e para com os seus
leitores, algo que faz parte de seu fascínio e de sua arte, isto que nos leva a
aceitarmos, sem restrições, como se fossem também nossas, as experiências que
seus poemas transmitem como em:
Pequeno poema didático
O tempo é indivisível. Dize,
Qual o sentido do calendário?
Tombam as folhas e fica a árvore,
Contra o vento incerto e vário.
A vida é indivisível. Mesmo
A que se julga mais dispersa
E pertence a um eterno diálogo
A mais inconseqüente conversa.
Todos os poemas são um mesmo poema,
Todos os porres são o mesmo porre,
Não é de uma vez que se morre...
Todas as horas são horas extremas...
E todos os encontros são adeuses.
(do
livro “Apontamentos de História Sobrenatural”, de 1976, quando MQ completava
setenta anos.)
O saudoso crítico Fausto
Cunha, entre outros que se debruçaram sobre os poemas de MQ, deixou registrado
que sua poesia é “difícil, porque intensamente alusiva e de um humor sutil,
irredutível.” ( “ A Luta Literária”, Rio de Janeiro, Ed. Lidador, 1964, p.
159).
Muito mais ficamos sabendo a respeito, por meio do fascinante livro
“Mário Quintana”, de Márcio Vassalo
(Ed. Moderna, 2006) para o público infantil (e também para o adulto). Um dia,
depois de observar que a esposa de Érico Veríssimo (sob a direção do qual
trabalhou na Editora Globo) vivia fazendo meias de lã para ele, lançou: “Acho
que a Mafalda pensa que sou uma centopéia.”
Mesmo já idoso, gostava muito de caminhar, só ou acompanhado, pelas
avenidas, ruas, becos, bares e travessas de Porto Alegre. Érico
Veríssimo comentava que “Mário
sobrevoava as noites da cidade”.
Mário sobretudo procurava e gostava de viver uma solidão intensa,
como registrou o escritor Armindo Trevisan: “Era quase impossível ter uma
conversa linear com Mário. Ele vivia em outro mundo, um mundo de espirais
intelectuais. A sua presença neste mundo era ocasional...”
Ficou
conhecido como poeta-bruxo, inclusive por causa de muitos de seus inigualáveis poemas em prosa. Faz-nos pensar
esta mini-máxima retirada de seu
“Caderno H” ( S.Paulo: Ed. Globo,
2005, 10a. ed., p. 42):
“E o que há de mais triste
E o que há de mais triste nesses poetas de equipe
é que eles naufragam todos ao mesmo tempo.”
Sabemos
que a obra do poeta Mário Quintana, esta não naufragará. A ele
acaba de ser conferida uma das máximas honras que se pode prestar a um escritor
brasileiro. Sua produção reunida entrou para a plêiade exclusiva dos
nossos grandes autores que têm suas “Obras Completas” lançadas em papel bíblia
pela Editora Nova Aguilar.
Se ele de
fato puder ouvir-nos e inteirar-se do que aqui se passa, não duvidem, seu
comentário será repetir aqueles versos do Soneto XXXV de seu primeiro livro:
“Quero é ficar com alguns poemas
tortos
Que andei tentanto endireitar em
vão...
Que lindo a eternidade, amigos
mortos,
Para as torturas lentas da
Expressão!”
Obras: A Rua dos
Cataventos (1940); Canções (1946); Sapato Florido (1948), poemas
em prosa; O Aprendiz de Feiticeiro (1950); Espelho Mágico
(1951), Em 1962 reuniram-se suas obras
em um único volume, sob o título Poesias. Outras obras: Caderno H
(1973); Quintanares (1976), que lhe valeu um poema dedicado por Manuel
Bandeira; Apontamentos de História Sobrenatural (1976); A Vaca e o
Hipogrifo (1977); Prosa e Verso (1978); Esconderijos do Tempo (1980); Nova Antologia Poética (1982), Batalhão
das Letras (1984); Baú de Espantos (1986); Preparativos de Viagem
(1987), além de várias antologias.
Para
o público infantil: Pé de Pilão (1975); Lili inventa o mundo (1983);
Sapo amarelo (1984); Nariz de Vidro (1984) e Sapato Furado (1994, de publicação
póstuma).
Traduziu Proust, Conrad, Rosamond Lehman, Voltaire,
Virginia Woolf, Papini, Maupassant, Balzac e vários outros autores relevantes.
E
vamos encerrar com :
Não te irrites, por mais que te fizerem... Estuda, a
frio, o coração alheio. Farás, assim, do mal que eles te querem, Teu mais amável
e sutil recreio...
Aricy Curvello é poeta, ensaísta e
tradutor. Autor de Mais que os Nomes do Nada, Uilcon Pereira: no
coração dos boatos, entre outros livros.