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São Paulo, Cidade Útero David J. F. do Vale Amado Os pulmões da cidade ofegam –
mais um dia agoniza. Um mênstruo de sol tinge de vermelho pálida paisagem. No
coração das máquinas, a vida ainda flutua. Carrilhões-generais, em suas naves
do tempo, orbitam arranha-céus e louvam o desespero dos que dormem o sono dos
justos. Doidas carruagens – vaga-lumes no cio – trafegam híbridos destinos e
congestionam artérias. O flagrante é mágico e supremo... um surdo silenciar
de ruídos – a orquestra dos homens-cifrão ensaia então o réquiem da noite.
Mãos de luzes sangüíneas esculpem gestos, seduzem aplausos, espargem tons
alucinógenos. Bem-aventurados boêmios – fantasmas insones – santificam o
prazer sorvendo ácidas venturas, devorando emoções vadias. Os amantes
(nômades anônimos, reis e rainhas) – brinda-os o amor – embriagam-se de
ânsias e versos. Exóticos seres roubam o sossego do asfalto e dançam valsas e
fugas. Os vendedores de sexo ofertam-se explicitamente – a maratona erótica
abate os sequiosos em peregrinação pelo calvário dos bordéis. O êxtase de
liberdade não se conspurca ante o pecado de amar incondicionalmente a vida:
uma multidão de infiéis farta-se de ilusões transgredindo todos os
mandamentos. São Paulo ovula infinitas paixões.
Pálido luar fecunda sonhos estéreis. Foliões alienígenas festejam orgíaca madrugada.
Fadas e duendes carpem a dor da trégua e abortam um novo dia com luvas de
pelica. Nasceste
grande, São Paulo, no tempo e no espaço certos, desde 1554, e um grito de
liberdade saído de teu ventre te fez maior, independente e soberana. Hoje, à tua
452a. translação, com trajetória e hora marcadas – um coro ufano de 10,5
milhões de vozes te reverencia: parabéns, “São São-Paulo”, fulcro de
grandeza, de tradições, de crenças, de ambições, de sonhos vívidos!
Diferentes raças constroem tua riqueza e gigantismo. Não há quem não se
enfeitice com a pluralidade de opções que ofereces: o atraente mundo dos
negócios, das artes, da gastronomia, do lazer, da fé, da liberdade de ser (e
estar) cidadão megalopolitano. Sessenta por cento da economia nacional é “made in”, nasce
em teu regaço, em teu parque industrial, em tuas usinas de conhecimento, em
teu sofisticado e complexo comércio de valores e idéias, e movimenta uma
balança de importações e exportações que suplanta a de muitos países; tua
Bolsa de Valores concentra um volume de transações da ordem de 1 bilhão de
reais por dia; pólo financeiro do Brasil e da América Latina, te dás a todas
as oportunidades de crescimento ensejadas por tua ampla rede bancária
implantada no Centro Velho e nas Avenidas Paulista e Faria Lima; o fomento à
captação de recursos externos e os investimentos em tecnologia de ponta abrem
espaço para que todas as nações mantenham representações diplomáticas e
comerciais sediadas no teu coração político-financeiro. São Paulo... uma sinfonia dissonante, um discurso
antropológico-esquizofrênico veemente, uma tela surrealista, um poema
construtivista, um organismo andrógino pós-moderno que ovula o terror e todas
as razões que fazem as pessoas se sentirem deletérias e felizes ao mesmo
tempo. São Paulo, berço das artes, dos museus Paulista, Mam, Masp, de Arte
Sacra, da Bienal e de um sem-número de galerias e monumentos que compõem a
essência do homem cosmopolita, brasileiro, paulista e paulistano, através dos
tempos. O que se cria e se inova nos grandes centros da Europa, Ásia e
Américas tem imediato reflexo na vida urbana “são-paulina” convulsionada
diuturnamente por edições de mega-eventos patrocinados pelos órgãos públicos
ou pela iniciativa privada. São Paulo, megalópole que materializa o melhor do
pensamento brasileiro e mundial, que miscigena saberes e etnias, que encurta
distâncias, que virtualiza o real e possibilita o imaginário, que
disponibiliza a todos os caminhos que dão acesso ao mundo. Nas
tuas mesas, São Paulo, Capital Global – costuma-se dizer –, passa-se a limpo
a história do Brasil e rascunha-se a do mundo. A tua gastronomia é um
milionário mercado que consome grande parte de tudo o que de bom e de melhor
se produz no Brasil. O Ceagesp, o Mercado Municipal e centenas de supermercados
e feiras-livres – artérias e órgãos vitais – abastecem uma vasta rede de
restaurantes e hotéis instalados em pontos estratégicos e em áreas nobres da
cidade. A tua culinária – um apetitoso prato dos deuses – é servida a todos
os paladares humanos: não há visitante terrestre ou celeste que não se renda
às delícias de la cucina paulistana. Diferentes raças e culturas
traduzem com apurado bom gosto o que é posto à tua mesa todos os dias.
Cardápios nacionais e importados aguçam o pecado da gula. Vale a pena se
deixar levar pelos “prazeres da carne”, degustando nobres iguarias (pratos
exóticos, todos os frutos do mar, artesanato de carnes maturadas, pizzas e
massas que fazem a diferença) e criativas e refinadas “especialidades da
casa” em luxuosos restaurantes e em renomadas trattorias que compõem o teu
roteiro gastronômico. São Paulo, cidade útero, onde tudo se dá à origem da vida,
onde tudo verte grandioso e contínuo, onde tudo se reifica geometricamente,
onde se produz e se consome em demasia realidade e fantasia, onde se fabricam
sonhos exeqüíveis e inexeqüíveis. Aqui tudo se pode com a mesma grandeza de
pensar e agir. Aqui, oh terra piratiningana, somos cidadãos do mundo, aqui
somos pecadores e santos sem o remorso da culpa e sem a vaidade da beatitude.
Aqui é o céu e o inferno, onde se vive e se morre sem saber se se é ou não
feliz, mas não há lugar melhor no mundo, que seja tudo e tanto a um só tempo,
em um mesmo espaço, onde cabem sem assombros o riso e o pranto, a poesia e o
espanto... São
Paulo – poético amor –, as tuas opções de lazer são infindas: pode-se
usufruir de tudo, o teu corpo, a tua medula e o teu cérebro, a qualquer hora
do dia ou da noite. Vive-se urbi et orbi a efervescência das
mega-exposições, das feiras públicas, dos leilões de arte, dos teatros, dos
cinemas, das óperas, dos musicais; o frenesi das casas noturnas; o glamour
dos shoppings e parques de recreação; o delírio nos estádios monumentais –
imensas torcidas desenham sempre um espetáculo de emoções; a segurança e o
aconchego dos clubes privados e casas de jogos, onde a prática esportiva e o
entretenimento atraem pessoas de todas as idades; as maratonas de rua,
prestigiadas sempre pela participação de atletas famosos do mundo inteiro,
atraídos pelo teu gentil e hospitaleiro cartão de visitas. São Paulo, um
convite irresistível para a realização de múltiplas fantasias e aventuras
radicais. São Paulo – Apolo, Teônis, Diana e Vênus –, o teu show da vida não
pára (nunca)! A
tua fé, São Paulo, remove montanhas. Quase duas mil religiões e seitas são
conhecidas no Brasil. Em teu seio concentram-se, sem preconceitos de credo,
núcleos de todas essas crenças e mais as advindas da pluralidade étnica que
mesclam a tua heterogênea população. Professa-se a fé em templos, igrejas,
oratórios, sinagogas, centros espíritas, casas de umbanda, terreiros de
candomblé, encruzilhadas da vida, enfim, em todos os teus santuários
divino-profanos, em todas as tuas praças e parques preservados e/ou
conspurcados, em todas as tuas ruas e avenidas de rush e de stress,
em todos os teus logradouros e sumidouros de mistérios e paixões. São
Paulo – plural e singular, presente e futuro, parte e todo, diabólico e
sagrado ser... ouço tua voz, teus medos, tuas penas, teus gemidos, teu eco
trêfego que se enclausura nos labirintos e veredas. Ouço teu coração-dínamo
pujante pulsar notas de ordem e progresso. O Brasil começa aqui, no Trópico
de Capricórnio, e se expande latitudinal e longitudinalmente como eco que
caracteriza o teu cenário cosmopolita. A tua parte é o teu todo e o teu todo
é o universo contido em ti. Aqui a tua gente se regala, se estratifica, se
constrói, estendendo os limites da razão e dos sentimentos; aqui a tua gente
singular conjuga o eu e o tu com a comunhão do nós – um só gesto conjugado e
declinado em todos os tempos e pessoas, coletivizado nas construções
filosófico-poético-aristotélico-belliana(s) “somos o que fazemos
repetidamente” e “não posso ser menor que o meu pensamento”. *
* * * * * * * São Paulo, quem não a conhece não viveu, mas quem a vive
conhece o diabo e deus; quem não a ama não se sabe vivo ou se já morreu, e
quem em si se perde e não se encontra é porque, de tanto amor, enlouqueceu.
Só aos loucos e apaixonados como eu (forasteiro adotado) resta sempre o
conforto de que não é ser bom ver-se livre desse inferno e nem é ser mau
estar condenado nesse céu. David J. F. do Vale Amado é escritor, professor universitário e
crítico literário. Autor de
Contestado, entre outros livros. |
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